CAPITALISMO E PANDEMIA
O capital não nasceu pronto e acabado como Afrodite, a deusa que nasceu pronta da cabeça de Zeus. O capital se forjou historicamente, passando por várias metamorfoses. Antes de constituir-se como força poderosa que tudo molda à sua imagem e semelhança, o capital era uma entidade que sobrevivia nos intermúndios das sociedades precedentes, não se cansando de adular e tirar proveitos das outras formas de organização social da produção.
A primeira manifestação do capital revelou-se na forma do capital usurário. Ele era muito raquítico, débil e frágil. Sua fragilidade fazia com que a atividade dos comerciantes fosse considerada como coisa de judeus, atribuindo-lhes o caráter de pessoa de índole duvidosa. Na sociedade grega, as atividades comerciais eram exercidas pelos estrangeiros e pelas mulheres, ou seja, aquelas pessoas que não participavam da democracia grega; não é à toa que os comerciantes aparecem na república ideal (Kallipólis) de Platão como o segmento social menos elevado das três classes sociais: comerciantes, guerreiros e governantes.
Durante muito tempo a atividade comercial foi considerada uma atividade desprezível e de pouca importância socioeconômica. Os seres humanos podiam perfeitamente viver sem o comércio, e as pessoas que viviam do comércio eram consideradas como criaturas torpes, gananciosas e fraudulentas. Nas sociedades antigas, a acumulação da riqueza em dinheiro ou moedas de ouro e prata foi duramente combatida pela filosofia, pela literatura, pela religião e pela concepção de mundo da época. O capitalista usurário era uma figura detestável e abusiva. Essa concepção pode ser observada nos distintos livros da Bíblia. Segundo o apóstolo Paulo, “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Já Jesus afirmou categoricamente: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom” (MATEUS, 6:24).
As grandes descobertas e a colonização cumpriram funções essenciais na mudança de mentalidade, juntamente com a reforma protestante e a contrarreforma católica. As mudanças operadas na esfera da economia reverberaram na esfera da filosofia moral quando René Descartes defendeu as paixões da alma. Ainda que a maior de todas as paixões fosse a razão, o universo filosófico deixou de transitar na démarche do tratamento tão somente das questões inerentes ao universo metafísico do ser perfeito e imutável. O tratamento das paixões na esfera filosófica representa uma superação do padrão filosófico medieval.
Em O Mercador de Veneza, Shakespeare oferece a interpretação do processo de decomposição da sociedade feudal e ascendência da sociedade burguesa. Apesar de combater a figura do mercador encarnada no judeu Shylock, detestado pela tentativa de fazer fortuna com a miséria alheia, a peça mostra a ascendência de determinadas cidades, como Veneza e Gênova.
Essas cidades serão o empório da Renascença e do nascimento do capitalista moderno; a fortuna de seus comerciantes se plasmou com as atividades de intercâmbio de mercadorias, vendas de escravos, empréstimos com juros abusivos e a colonização dos povos conquistados. Veneza representa o pórtico de entrada da Europa na rota comercial em que a lógica da cobrança de juros pelos empréstimos realizados não havia ainda contaminado completamente a mentalidade cristã. A mentalidade doentia do capitalismo revela-se na figura de Shylock, que considerava a cobrança de juros como uma dádiva divina.
Apesar de o mercador levar a pior na obra de Shakespeare, isso não altera o fato de ser a atividade mercantilista o fundamento da transição do feudalismo ao capitalismo. Na verdade, o mercador levou vantagem e estabeleceu as bases para alterar radicalmente as distintas concepções de mundo que perpassaram as sociedades pré-capitalistas.
Embora não constitua a quintessência do capital industrial e financeiro, o capital usurário revela seus aspectos latentes e encobertos que eram duramente criticados nas sociedades pré-capitalistas. O representante do capital usurário é uma figura avarenta, calculista e irascível. Essas qualidades duramente combatidas na figura do comerciante avarento se irradiaram na composição do capital mercantil, industrial e financeiro, em que o capitalista industrial e o banqueiro têm no lucro o fundamento de sua existência.
1.1 Pandemia e capitalismo
O desejo de Midas de transformar todas as coisas em ouro marca o desenvolvimento da sociedade capitalista. Os digníssimos representantes do capital mercantil, elementos de transição para o capital industrial, estabelecem um pacto de morte com o dinheiro. Este deixa de ser um mero instrumento de troca para constituir um elemento fundamental da existência da humanidade. O mercador deixa de ser uma figura recusada e criticada do passado para tornar-se símbolo do homem bem-sucedido da sociedade burguesa na figura de Robinson Crusoé.
A personagem da obra de Daniel Defoe fez fortuna transportando seres humanos como escravos para a Europa e para a América, mediante a violência aberta, espalhando desgraças e epidemias. Essas epidemias levaram ao desaparecimento de mais de 100 milhões de pessoas no continente americano.
Entre os distintos povos devastados pelas epidemias na América merece destaque o povo potiguara, povo que habitava as regiões litorâneas que iam de João Pessoa (Paraíba) até São Luís (Maranhão). Os chamados “pescadores ou comedores de camarões” viviam de maneira saudável no litoral brasileiro até a chegada dos colonizadores europeus. Os potiguaras venceram os portugueses e espanhóis em várias ocasiões: 1) na ilha de Itamaracá, em 1575, quando atacaram vários engenhos em represália ao sequestro da filha de um cacique potiguara; 2) no rio Paraíba, em 1579, quando os portugueses enviaram expedições punitivas pelos massacres cometidos pelos indígenas aos engenhos estabelecidos (MOONEN, 2008); 3) na batalha contra os terços promovidas pelos representantes da Coroa portuguesa nas capitanias de Pernambuco e Bahia em 1584; 4) no cerco da cidade (forte) de João Pessoa e seus habitantes; 5) no combate aos portugueses na década de 1590, sob a liderança de Tejucupapo.
A onda vitoriosa dos potiguaras sobre os portugueses e espanhóis somente será obstada em 1597, quando uma epidemia de varíola dizimou parte expressiva de 100 mil deles (MOONEN, 2008). Completamente fragilizados pela epidemia, os potiguara tornaram-se presas fáceis da encarniçada repressão desencadeada pelos portugueses.
A epidemia foi elemento decisivo na vitória portuguesa sobre os tupinambás na Confederação dos Tamoios – sucedida na região de Bertioga (SP) e Cabo Frio (RJ), entre 1554 e 1567. Em 1564 a epidemia de varíola contaminou todo o litoral brasileiro, levando à morte de milhares de indígenas, inclusive do líder Cunhambebe, e enfraquecendo substancialmente a luta contra os portugueses. Muitas outras batalhas foram ganhas pelos portugueses e espanhóis contra os indígenas mediante o recurso das epidemias.
A República dos Palmares também foi destruída com o recurso da epidemia. Palmares era uma república impossível de ser destruída pelos expedientes normais da guerra até que Domingos Jorge Velho recorreu aos mecanismos da guerra bacteriológica para dizimar a população palmarina.
As epidemias foram mecanismos importantes para destruir as formas de sociedades contrapostas ao capitalismo e à lógica do capital. As formas de organização da vida material assentadas no coletivismo e na socialização do excedente precisavam ser destruídas, pois elas se contrapunham ao modo de ser do capital. Pela mediação da escravização dos indígenas e africanos estabeleceram-se as bases para o processo de acumulação primitiva de capitais.
A expropriação das riquezas naturais e a exploração do trabalho dos povos originários da América e da África permitiram a constituição da indústria moderna em bairros destituídos de qualquer infraestrutura necessária. As epidemias e doenças acometeram também os trabalhadores expropriados de suas terras na Europa.
Os capitalistas não perderam oportunidades para usar a epidemia e destruir a classe trabalhadora, impedindo o fortalecimento de sua organização. Utilizaram-se da peste negra e da peste bubônica para impedir a organização dos trabalhadores e sua luta por melhores salários.
Essa pandemia dizimou metade da população da Europa e quase 200 milhões de pessoas no mundo, entre 1347 e 1351, numa época em que se desconhecia completamente a existência do vírus e das bactérias. A enfermidade contagiosa promovia manchas “negras” na pele, acompanhadas de dores e inchaços em regiões de grande concentração de gânglios do sistema linfático, como a virilha e as axilas. A infecção no corpo contaminado avançava rapidamente e levava à morte em menos de cinco dias.
Diferentemente das cidades da América, que desconheciam a existência de epidemias até a chegada dos colonizadores europeus, as cidades da Europa eram sujas e destituídas de saneamento básico. Inexistia tratamento de água potável e as pessoas estavam sujeitas a inúmeras enfermidades, pois não tinham o hábito do banho diário, de lavar as mãos constantemente e cuidar rigorosamente da higiene pessoal. Tudo isso era aguçado pela concepção de mundo, dominada pela superstição que transformou a epidemia numa pandemia que envolveu distintos continentes. Segundo Trindade (s/d, p. 3):
Em 1347, navios mercantes italianos vindos do Mar Negro, onde costumavam comprar tecidos e peles transportadas da Mongólia e da China pela Rota da Seda, trouxeram ao porto de Gênova passageiros indesejáveis nos seus porões: ratos, com pulgas contaminadas por uma moléstia terrível, que logo contaminaram todos os ratos da cidade, e os ratos das cidades vizinhas e dos países vizinhos. À medida em que a população de roedores ia morrendo, as pulgas passaram a se alimentar do sangue das pessoas, que começaram a morrer aos milhares e, em seguida, aos milhões.
O flagelo da peste perpassou a Europa até o século XVIII. O seu ponto de partida foi a Rota da Seda e o desenvolvimento do mercado mundial. Este foi o verdadeiro responsável pela transformação da epidemia numa pandemia, da mesma forma que o mercado internacional foi o veículo principal da propagação de pandemias como o coronavírus na contemporaneidade. O mercado mundial é espaço de troca não somente de mercadorias, mas também de doenças.
Os povos isolados no passado foram completamente retirados do isolamento e inseridos no contato com outros povos mediante a Revolução Industrial e a revolução dos meios de transportes. As rotas transatlânticas espalharam não somente mercadorias, mas doenças e desgraças, tanto as desgraças emanadas diretamente da intervenção dos capitalistas sobre os povos colonizados, quanto desgraças decorrentes de forças adversas, que os capitalistas souberam utilizar para impor seus propósitos aos dominados.
Como o lucro é o cerne da produção capitalista, a tendência do capitalismo é sempre aprofundar a desgraça e a miséria da classe trabalhadora. A peste bubônica abalou completamente as estruturas do sistema capitalista e contribuiu para o aprofundamento da crise econômica do feudalismo, suscitando o declínio da cavalaria, a ascensão da infantaria, as revoltas camponesas e o desenvolvimento da produção capitalista, a guerra dos Cem Anos e a reconfiguração política e econômica da Europa.
Os camponeses e os artesões medievais tentaram tirar proveito da diminuição do número de trabalhadores decorrente da peste negra na Europa medieval aumentando o valor de sua força de trabalho. Escreve Huberman (1986, p. 59): “Com a morte de tanta gente, era evidente que maior valor seria atribuído aos serviços dos que continuavam vivos […]. Como a oferta de trabalho se reduzia, a procura relativa dele aumentava. O trabalho do camponês valia mais do que nunca – ele sabia disso”. A carência de força de trabalho disponível elevou o valor dos salários em mais de 50%. Com a diminuição dos seus lucros, os senhores feudais e a nascente burguesia buscaram impedir a organização proletária e a elevação dos salários através da maquinaria estatal, que promulgou leis em todas as partes da Europa impedindo os trabalhadores de lutarem por melhores salários. Escreve Huberman (1986, p. 75):
Na Inglaterra, a Lei dos Trabalhadores de 1349 determinava que “nenhum homem pagará ou prometerá pagar maiores salários que os habituais… nem de qualquer forma receberá ou pedirá o mesmo, sob pena de ter de pagar o dobro do que pede …. Seleiros, peleiros, curtidores, sapateiros, alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, teleiros, e outros artífices e trabalhadores, não receberão por seu trabalho e ofício mais do que costuma lhes ser pago.
A lei estabelecida na Inglaterra contra os trabalhadores será reproduzida em toda a Europa. A intensificação das contradições entre senhores e servos, patrões e proletários levou à consciência de classe dos trabalhadores. Mesmo destruindo as associações dos trabalhadores com perseguições políticas, prisões e o assassinato de suas lideranças, os trabalhadores continuaram a exigir melhores salários através da paralisação da produção, de greves e revoltas contínuas. Os trabalhadores não diminuíram seu ímpeto contra as classes dominantes, porque observaram que a peste negra atingia não somente os pobres, mas afetava também a nobreza e o clero. A peste corroeu o entendimento de que as classes dominantes erram infalíveis e superiores; elas não contavam com nenhuma proteção divina, da mesma maneira que os pobres. Isso permitiu que nas revoltas camponesas fossem exibidas sem nenhum temor as cabeças de sacerdotes e nobres espetadas em estacas de madeira.
As práticas rastejantes que as classes dominantes adotaram para derrotar as revoltas camponesas reverberaram ao longo da história do capitalismo. A única moral que o capitalista conhece é a moral do lucro e da acumulação. Como o capital é desumano por natureza, o capitalista não tem nenhum escrúpulo em recorrer à mentira, à hipocrisia e à manipulação. Para assegurar seus interesses, eles mentem abertamente, subornam e corrompem terceiros, roubam e matam lideranças operárias e camponesas, declaram guerras às formas de organização socioeconômicas não capitalistas. Os capitalistas recorrem aos expedientes mais baixos e torpes que a humanidade possa imaginar para assegurar a exploração do trabalho assalariado e a expropriação produzida pelas sociedades não capitalistas.
1.2 A exploração capitalista e o adoecimento do trabalhador
A passagem do feudalismo ao capitalismo deu-se mediante a expropriação das terras camponesas e a transformação do camponês em trabalhador assalariado. A expropriação das terras camponesas foi fundamental para a formação do exército industrial de reserva nas grandes cidades: as ovelhas tomavam conta das terras dos séquitos feudais, e os camponeses passavam a perambular pelas zonas urbanas, buscando emprego e um local para descansar. A maioria dos óbitos acontece entre trabalhadores vindos do campo que, “durante a viagem e logo ao chegar, passaram por grandes privações, dormindo meio nus e meio mortos de fome pelas ruas e sem encontrar emprego” (ENGELS, 2008, p. 139).
Em sua obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels apresenta um retrato da condição dos trabalhadores na indústria. Ele produz um documento acerca da miséria dos trabalhadores da indústria inglesa, apontando que seus salários garantiam apenas a sobrevivência cotidiana; no final de semana, a família operária geralmente carecia de alimentação. Escreve Engels: “É claro que semelhante modo de vida só pode originar toda sorte de doenças; quando as enfermidades chegam, quando o homem adoece, é então que começa a grande miséria”. A alimentação imprópria debilita o sistema imunológico. Há também as doenças resultantes da ausência de segurança no trabalho, das condições insalubres das fábricas, dos galpões e espaços sem ventilação ou mal ventilados e do contato constante com substâncias tóxicas.
O ambiente fabril propício ao adoecimento é fortalecido pelas residências operárias empilhadas umas nas outras, “mal construídas, malconservadas, mal arejadas, úmidas e insalubres” (ENGELS, 2008, p. 115). As doenças pulmonares resultavam da associação entre as péssimas condições de alimentação, de trabalho e de moradia.
As mortes nas cidades industrializadas, como Manchester e Liverpool, superavam expressivamente as sucedidas no campo na primeira metade do século XIX. Assim, “as mortes por hidrocefalia são três vezes mais numerosas que no campo, e as motivadas por convulsões, dez vezes” (ENGELS, 2008, p. 147). A maioria do proletariado de Manchester e Londres sofre de doenças pulmonares, apresenta aparência de tísico, com aspecto sempre magro, tórax estreito, olhos encurvados, rostos abatidos e inermes.
Além da tuberculose, os trabalhadores das grandes cidades industriais da Inglaterra sofriam de escarlatina e febre tifoide. Esta levou à morte de mais 6 mil pessoas somente em Edimburgo, em 1817; em 1837, matou 10 mil na mesma cidade. Em Londres, dizimou 1.462 pessoas em 1843; e mais de 10 mil em Glasgow.
Muitos trabalhadores morreram na Escócia e na Irlanda. Somente na Irlanda, superexplorada pelos ingleses, a febre epidêmica matou 95% da população do bairro pobre de Waterford (ENGELS, 2008, p. 140). O surto de febre, na Escócia e na Irlanda, sempre é acompanhado pela crise econômica resultante da diminuição da colheita e da atividade comercial.
Nesse processo, quem mais sofreu foram os filhos dos trabalhadores desempregados. O ambiente dominado pelo pauperismo e contaminado pelas epidemias aumentou a taxa de mortalidade infantil. Escreve Engels (2008, p. 147): “mais de 57% dos filhos operários morrem antes de completar cinco anos”. E acrescenta (2008, p. 147): “nas cidades, as doenças de crianças causadas por varíola, sarampo, coqueluche e escarlatina são quatro vezes maiores que no campo”.
Além das doenças pulmonares, os trabalhadores sofriam com doenças abdominais, provocadas pelos alimentos indevidos e de baixa qualidade. Destituídos de acesso aos hospitais e aos médicos especializados, os trabalhadores acabam recorrendo à automedicação; as drogas utilizadas para minimizar suas dores multiplicavam seus problemas de saúde. Para isso também contribuíram o espaço de trabalho insalubre, a falta de saneamento básico nos bairros e de um sistema de saúde adequado.
O capital industrial gestou o proletariado num espaço doentio e malévolo. A ampliação das fábricas e indústrias representou a intensificação da miséria e da exploração da classe trabalhadora.
1.3 Pandemia do exército industrial de reserva e o adoecimento dos trabalhadores
Pela mediação do exército industrial de reserva, a burguesia consegue controlar a força de trabalho e derrotar as distintas formas de organização dos trabalhadores. Uma parte do conflito existente entre capitalistas e proletários acaba sendo deslocada para o interior do proletariado mediante a constituição do exército industrial de reserva. Este, segundo Marx (1985, p. 2007), segmenta-se nas formas líquida, latente e estagnada. A maioria da superpopulação relativa é formada pelos trabalhadores e trabalhadoras lançados no absoluto pauperismo. Extraindo desse segmento o lumpemproletariado, constituído por vagabundos, delinquentes e prostitutas, essa camada social é formada por aqueles que ainda estão aptos ao trabalho, pelos órfãos e crianças e pelo segmento que não pode mais trabalhar. É o segmento formado pelos “degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”, aqueles que transcendem a média da idade normal dos trabalhadores e que foram vitimizados pela grande indústria.
O desenvolvimento da produção industrial representa o crescimento exponencial dos inválidos, aleijados, doentes e viúvas. A saída para esse segmento foi apresentada pelos próprios trabalhadores e não pelos capitalistas. Foram os próprios trabalhadores que forjaram as caixas de auxílio mútuo para resolver seus problemas. Observando que a organização de auxílio mútuo crescia e representava uma ameaça aos interesses dos capitalistas, os governos passaram a disputar o controle da atividade de assistência social, constituída pelos próprios trabalhadores, forjando a previdência pública com recursos exclusivos dos trabalhadores.
O controle das caixas de auxílio dos trabalhadores permitiu que os capitalistas se apropriassem dos recursos destinados à saúde dos trabalhadores e investissem tais recursos no próprio desenvolvimento do capital industrial e financeiro. A contribuição compulsória dos trabalhadores assegurou a efetivação dos grandes projetos de desenvolvimento nacional, como a construção de Brasília, dos grandes conjuntos habitacionais, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), da Companhia Vale do Rio Doce, das grandes usinas de energia elétrica (Eletrobras, Chesf etc.) e da Transamazônica.
O capitalismo nunca esteve preocupado efetivamente com a saúde do trabalhador. Pelo contrário, representa a intensificação do adoecimento dos trabalhadores. A doença do trabalho assalariado se expressa na reprodução constante da venda da força de trabalho. O desenvolvimento tecnológico economiza o tempo de trabalho mediante o desgaste constante da força de trabalho.
O trabalhador entra saudável na fábrica e sai do espaço fabril completamente adoecido, pois o capitalista exige, numa jornada de trabalho de oito horas, que o trabalhador produza o equivalente a três jornadas. Desse modo, no decurso de dez anos, o trabalhador produz o equivalente a trinta anos. Já as contrarreformas da previdência social impõem que o trabalhador trabalhe mais 15 anos, para permitir que a doença capitalista por mais trabalho possa continuar.
O rebaixamento constante do valor dos salários enriquece o capitalista e aprofunda a doença dos trabalhadores. A intensificação da produção capitalista mediante a flexibilização e a terceirização representa o aumento da doença e dos distúrbios do lado dos trabalhadores. As doenças decorrentes do mundo do trabalho desgastante e repetitivo se expressam na performance das doenças como a LER (Lesão do Esforço Repetitivo) e os Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). A lesão muscular decorrente da atividade repetitiva e contínua pode promover doenças como tendinite, tenossinovite, bursite, epicondilite, dedo em gatilho, síndrome do desfiladeiro torácico, síndrome do pronador redondo e mialgias.
A sobrecarga de trabalho implica em patologias no corpo do trabalhador. Entre as doenças promovidas pela exploração do trabalho destacam-se as lesões na coluna vertebral. Os capitalistas não se cansam de submeter os trabalhadores ao trabalho com equipamentos e espaços inadequados, sobrecarga de tarefas, peso e atividades. Assim, o corpo e a mente operária são completamente destruídos para atender aos propósitos da patologia do capital.
A natureza doentia do sistema do capital se exprime na necessidade de controle absoluto do trabalho. O poder do capital incorpora num nível muito mais sofisticado a figura do poder patriarcal e do poder do senhor de escravos. As funções totalitárias do poder do capital revelam-se nos distúrbios comportamentais de suas distintas personificações. O autoritarismo do senhor de escravos, que representava o capital mercantil, ganha corolários sofisticados na liberdade que enseja o contrato de trabalho, em que o trabalhador é livre para vender ou não sua força de trabalho. Na verdade, o trabalhador está condenado a vender sua força de trabalho para não morrer de fome.
O autoritarismo do sistema do capital sobre os corpos e desejos dos trabalhadores trava o desenvolvimento de suas verdadeiras potencialidades. O verdadeiro reino da liberdade é embotado pelo reino da necessidade. A superprodução de mercadorias adoece completamente o corpo e embota a mente dos trabalhadores. Quanto mais riqueza os trabalhadores produzem, mais pobres os trabalhadores ficam.
A doença assentada no lucro e na apropriação do tempo de trabalho excedente dos trabalhadores somente pode ser curada com a ação revolucionária da classe trabalhadora. Estes precisam reconfigurar a produção para que a humanidade possa cuidar de si e definir o que realmente deve produzir para elevar seu bem-estar psíquico, mental, corpóreo e material.
O sistema do capital é uma pandemia que afeta diretamente a saúde dos trabalhadores. A doença do capital usurário e mercantil, intensificada pelo capital industrial e financeiro, somente pode ser interceptada pela ação coletiva e conjunta de trabalhadoras e trabalhadores. Por isso os capitalistas procuram fragmentar os trabalhadores e tentam quebrar as organizações operárias realmente combativas. A organização internacional do trabalho se constitui como antídoto para combater a epidemia do capital, que destrói a força de trabalho, a natureza e o bem-estar da humanidade. Somente a organização dos trabalhadores pode eliminar o vírus do lucro, do amor à propriedade privada e a exploração do homem pelo homem. A classe trabalhadora deve, com o auxílio dos cientistas sociais revolucionários, eliminar o capital para o bem da humanidade.
Conclusão
Os governos da burguesia seguem a mesma lógica: aproveitam-se do momento em que os trabalhadores estão sendo atacados pela pandemia do coronavírus para reduzir seus salários. Os capitalistas atacam os direitos de trabalhadoras e trabalhadores por todos os lados e em todas as direções. Nisso estão irmanados o governo Bolsonaro, o parlamento burguês e todo o aparato jurídico e repressivo do Estado.
A subordinação completa do Estado aos interesses do capital financeiro assegura que todas as medidas estatais serão direcionadas para atacar os trabalhadores e defender os interesses das grandes corporações financeiras e do sistema financeiro. Todos os dias, o governo Bolsonaro, o Parlamento burguês e os aparatos jurídicos e repressivos da burguesia lançam medidas contra os (as) trabalhadores (as). Enquanto, de um lado, o governo libera trilhões para salvar os capitalistas da crise financeira, especialmente os especuladores da Bolsa de Valores, do outro, tramita no Congresso Nacional várias medidas para reduzir o salário dos servidores públicos em até 50%. Somado com o reajuste das alíquotas da previdência social (mais de 11%) e os descontos do imposto de renda, o servidor público (27,5%) deve receber menos de 20% de seu salário.
Trata-se de um confisco direto do salário dos funcionários públicos para atender aos interesses do grande capital. O governo não para de editar decretos atacando os trabalhadores do setor privado, admitindo a demissão sumária deles, a redução da jornada de trabalho e o corte dos salários em até 100%. Mais de 600 mil trabalhadores de bares e restaurantes foram demitidos com a pandemia em menos de duas semanas. Os trabalhadores das companhias aéreas tiveram seus salários reduzidos em 70%.
O montante de 1,5 trilhão liberado para os banqueiros permitiria construir mais de 1,4 milhão de leitos de UTI e erguer milhares de hospitais no país. Além de liberar trilhões para os capitalistas, o governo anuncia uma série de medidas para isentar os empresários e banqueiros do pagamento de vários impostos. A Medida Provisória (MP) 936 possibilita a redução e a suspensão dos salários por até três meses, sendo uma parte dos rendimentos paga pelo governo federal mediante o seguro desemprego. Para esconder a natureza predatória do sistema estatal, o governo pretende oferecer uma ajuda de R$ 600, durante três meses, para os trabalhadores informais, desempregados e contribuintes individuais do INSS que cumpram os requisitos de renda média familiar.
Esse é o mecanismo que o governo adota para encobrir os saques trilionários realizados para beneficiar as transnacionais brasileiras e digníssimos homens e mulheres de negócios como Joseph Safra (Banco Safra), Jorge Paulo Lemann (Ambeve), Marcel Hermann Telles (3G Capital), Eduardo Saverin (Facebook), Carlos Alberto Sicupira (Ambeve), José João Abdalla Filho (Banco Clássico), Abilio dos Santos Diniz (BRF), Fernando Roberto Moreira Salles (Itaú), Lia Maria Aguiar (Bradesco), André Esteves (BTG Pactual), Jaime Garfinkel (Porto Seguro), João Roberto Marinho (Grupo Globo), Candido Koren Lima (Grupo Habvida), Ermírio Moraes (Votorantim), José Luís Cutrale (Sucrocítrico Cutrale), Luciano Hang (Havan), Luiz Frias (Grupo Folha e UOL) etc.
Essas figuras representam a fração da burguesia que engloba 1% da humanidade e detém 99% da riqueza mundial mediante a exploração direta da classe trabalhadora. Essa classe vive a sugar os trabalhadores como vampiros. Esses senhores e senhoras são a síntese do que existe de podre no sistema do capital. Não é à toa que empresários como Junior Dursk (Madero), Alexandre Guerra (Giraffas), Luciano Hang (Havan) e Roberto Justus (Grupo Newcomm), Abílio Diniz (Carrefour), Marcelo de Carvalho (Rede TV), iniciaram uma campanha publicitária, na primeira semana de abril de 2020, defendendo não somente “a volta ao trabalho” e para o “Brasil não parar”, mas defendendo abertamente que a morte de algumas milhares de velhinhos não representava absolutamente nada perante o desenvolvimento econômico. A economia deveria voltar a funcionar, porque o movimento da economia estaria acima da vida dos trabalhadores, para estes crápulas.
O discurso desses empresários tem o respaldo dos poderosos grupos econômicos transnacionais como Ambev, Vale, GM, VIVO, Suzano, Cyrela, ABRAFARMA (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias), LATAM, Nestlé, Bradesco, Procter & Gamble, Bunge, Rede D’or, COSAN e Sain Gobain etc. Todas essas empresas pressionam que o governo adote medidas severas contra os trabalhadores. Ao contrário do que defende os capitalistas, os revolucionários não defendem a morte de ninguém, mas sim a morte do verdadeiro responsável pelo problema da humanidade: o capital.
Os problemas da humanidade não se resolvem eliminando os capitalistas privados, mas sim superando completamente o sistema assentado na exploração do trabalho e na constituição de um novo modo de organização da produção: o trabalho associado, livre e universal. Se a morte de um capitalista resolvesse o problema dos trabalhadores a coisa seria fácil. O capitalista morre, mas o sistema do capital continua vivo. Olacyr Moraes, o rei da soja, morreu, mas o agronegócio continuou intocável. Não se trata de uma luta contra a figura do capitalista privado, mas contra o sistema do capital como um todo. É preciso acabar com o capital e sua forma de dominação sobre o trabalho.
A luta contra os ataques aos direitos dos trabalhadores deve se constituir numa ampla luta contra o sistema do capital. Não basta derrotar a política do endividamento público, é preciso destruir o sistema do capital financeiro e o mercado mundial. É preciso entender que o capital é uma pandemia. É um sistema internacional poderosamente articulado e centrado na exploração do trabalho assalariado. É necessário que todos os trabalhadores e trabalhadoras do mundo organizem a luta imediata numa perspectiva coesa, abrangente e universal.
A crise sanitária do coronavírus faz os capitalistas aprofundarem os ataques aos direitos dos trabalhadores, mas pode servir também para aprofundar a consciência da classe trabalhadora. Ela revela a natureza destrutiva e profundamente doentia do sistema do capital, por isso, a pandemia também pode ser um momento para os trabalhadores se organizarem: como aconteceu na etapa posterior à peste bubônica na Europa, em que os camponeses e os artesões orquestraram várias revoltas e lutas revolucionárias que contribuíram para lançar abaixo o sistema feudal.
A crise do coronavírus pode servir para aumentar a consciência da classe trabalhadora, na medida em que a maquinaria estatal da burguesia aproveita para saquear e expropriar ainda mais os trabalhadores. Estes podem aguçar sua consciência de classe transformando o espírito de revolta em revolução contra o edifício do capital. O importante é que os trabalhadores comecem a perceber que o capital é um sistema histórico e não natural, e que se pode construir outra sociedade.
É fundamental que a classe trabalhadora perceba por meio da pandemia, a natureza doentia do capital e que o verdadeiro vírus que adoece a humanidade se chama capitalismo. Os trabalhadores devem compreender os limites do sistema do capital e a impossibilidade deste em resolver os problemas fundamentais da humanidade, universalizando de forma concreta o acesso à saúde, à educação e ao trabalho.
Por Artur Bispo
Referências
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2008.
HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Trad. Waltensir Dutra. 21.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1986.
MOONEN, Frans. Os índios potiguara da Paraíba. 2ª edição digital aumentada. Recife: 2008.
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. Endereço eletrônico: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado1.htm. Acesso em 04 de abril de 2020.
Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/28/capitalismo-e-pandemia/
No Comments