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A PANDEMIA DO DINHEIRO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Professor da UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS (UFAL)

A PANDEMIA DO DINHEIRO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Dinheiro do mundo, nova classe e como vencê-la - Outras Palavras

A Sociedade Capitalista – Por Antonio Martins

No decorrer deste texto vamos tentar entender a natureza do dinheiro na sociedade capitalista. É importante investigar como o dinheiro vai ganhando espaço nas sociedades de classes e, paulatinamente, deixa de ser um instrumento de mediação das relações de troca e intercâmbio de produtos para se transformar no elemento regulador do modo de produção capitalista. Especialmente, como o dinheiro penetra em todos os poros da sociedade contemporânea e plasma a existência de todos os seres humanos. Apesar de o dinheiro exercer um papel poderoso na sociedade capitalista, muito pouco se sabe sobre a origem dele. A função poderosa nas mentes e corações das pessoas se manifesta na propositura de que o dinheiro é a chave para a felicidade. E não faltam mecanismos para incentivar essa perspectiva.

Os programas midiáticos prometem dinheiro na forma de “Baú da Felicidade”, “Show do Milhão”, “Bolões da Mega-Sena”, “Lotomania”, “Lotofácil”, “Quina”, “Casas de Apostas”, “Cassinos” etc. A manipulação da consciência da classe trabalhadora é maximizada reiteradamente mediante os programas televisivos que prometem que o dinheiro pode solucionar todos os problemas da humanidade; dessa maneira, pessoas saem do anonimato e tornam-se famosas quando ganham um “carro zero” ou prêmios milionários na roleta. A poderosa maquinaria do reino da publicidade e da propaganda intensifica ainda mais a ignorância das massas acerca do verdadeiro fundamento da riqueza da sociedade. O dinheiro parece brotar de si mesmo, feito uma alquimia ou feitiço. Desaparece completamente sua relação orgânica com o mundo do trabalho.

O verdadeiro fundamento da riqueza deixa de ser o trabalho e os trabalhadores produtivos. A alienação que perpassa o trabalho na sociedade capitalista, em que os trabalhadores produzem riqueza e vivem na miséria, é maximizada com a elevação do papel do dinheiro. A sociedade orientada para o dinheiro esquece que sua fundamentação é o trabalho assalariado ou abstrato. É a natureza abstrata do trabalho que faz com que o dinheiro seja essa abstração difícil de ser elucidada. A complexidade da forma de apropriação do tempo de trabalho excedente (mais-valia) que rege a sociedade capitalista e o sistema do capital impede que os trabalhadores empregados e desempregados tenham completa clareza da natureza do dinheiro, apesar de saberem perfeitamente que são explorados e esmagados pelo patrão ou pelo capitalista. A apreensão da história do dinheiro é fundamental para se superar a compreensão de que o dinheiro se constitui como quintessência da história da humanidade, pois muitas sociedades não recorreram ao dinheiro nem às relações de troca para forjar a reprodução de sua existência material. O dinheiro não se constitui como o elemento fundamental da história da humanidade; pelo contrário, ele esconde a verdadeira riqueza da humanidade e oblitera a compreensão do elemento fundamental que assegura a existência da humanidade: o trabalho. A humanidade pode viver sem dinheiro, mas não pode existir sem trabalho. Não é à toa que nas situações de crises, guerras e pandemias, a primeira coisa que sofre desvalorização é o dinheiro. As coisas passam a ficar ainda mais caras e o dinheiro é tão desvalorizado que se precisa de um caminhão de dinheiro para adquirir alguns quilos de bens de materiais e produtos alimentícios.

A verdadeira riqueza da humanidade não é o dinheiro, mas o trabalho humano concreto. É mediante o trabalho, enquanto processo de transformação da natureza, que se obtém o necessário para a reprodução da existência humana. O trabalho é uma necessidade eterna dos homens. Ao contrário do dinheiro, nenhuma sociedade pode existir sem o trabalho humano. O desenvolvimento da relação orgânica do homem com a natureza, pela mediação do trabalho, permite o afastamento das barreiras da natureza e o crescimento cada vez mais ampliado da subjetividade humana. Ao transformar a natureza com o seu trabalho, os homens acabam transformando também sua forma de existência, que culmina na descoberta da agricultura e da pecuária: a revolução do Neolítico. O aprimoramento da relação do homem com a natureza permite o desenvolvimento dos meios de produção e a possibilidade de o trabalhador produzir mais que o necessário para a reprodução de sua existência. Com isso se constituem as bases para o processo de acumulação de mais-trabalho e para a existência das sociedades de classe. E com as sociedades de classe aprofunda-se a separação entre os trabalhadores e seus meios de produção e subsistência, permitindo que as classes dominantes controlem de maneira poderosa os trabalhadores – essa é a história das sociedades escravistas, feudal, asiática e capitalista.

É somente na sociedade capitalista, enquanto sociedade forjada na contraposição entre burguesia e proletariado, que o dinheiro vai exercer um papel nunca alcançado nas sociedades passadas. Nas sociedades precedentes, o dinheiro existia somente nos seus intermúndios, como os deuses na concepção de mundo de Epicuro. O dinheiro aparecia apenas nas fronteiras das sociedades antigas, sendo o exército o lugar privilegiado de sua manifestação. O capital usurário e comercial não se constituía como núcleo essencial das sociedades pré-capitalistas, pois os indivíduos produziam para atender às suas necessidades e não às necessidades do mercado. Levava-se ao comércio somente o excedente, ou seja, aquilo que sobrava e não era possível de ser consumido na mesma comunidade. A troca emergiu da necessidade de passar adiante o excedente produzido. E para facilitar a troca ou o intercâmbio das mercadorias entre si, os homens elegeram pessoas escravizadas, ou animais tal qual, gado, cabra, entre outros, como mercadorias para intercambiar com outras.

A facilidade na utilização de animais e seres humanos consistia na mobilidade de cada uma dessas formas de troca. Não é à toa que o termo “pecúnia” procede do latim “pecus”, que significa rebanho (gado), ou “peculium”, relativo ao gado miúdo (ovelha ou cabrito); e que salário proceda de “sal”, pois existiu uma época em que o pagamento dos trabalhadores era feito em sal. Ele foi utilizado como moeda de troca no passado entre distintas sociedades. A descoberta dos metais e o caráter duradouro deles levaram-nos à condição privilegiada no intercâmbio das mercadorias entre si. A cunhagem de moedas, com tamanho e peso específico, ganhou status privilegiado entre os povos comerciantes. Além dos fenícios e judeus, os chineses, muçulmanos e viquingues desenvolveram atividades comerciais utilizando moedas cunhadas, mas nenhuma dessas sociedades deixou de ter como base da organização de sua existência material a produção agrícola e a manufatura camponesa. Nessas sociedades, as moedas eram fabricadas pela mediação da atividade manual, pois inexistiam bancos e instituições financeiras como a Casa da Moeda. A inexistência dessas instituições permitia a presença de figuras como os mercadores, que representavam o capital usurário. Eles exerciam a função de guardadores da riqueza em ouro de terceiros, que em troca recebiam um recibo como garantia. Essa prática evoluiu ao longo da história com o advento do capitalismo, em que a riqueza da sociedade se constitui num amontoado de mercadorias (MARX, 1985).

A emergência da burguesia implicou o aperfeiçoamento do sistema de troca, do comércio e da constituição do sistema bancário. O aperfeiçoamento do sistema bancário permitiu que este ascendesse à condição de produtor das primeiras cédulas de “papel moeda” ou cédulas de banco. A relação orgânica de subordinação dos Estados-nacionais aos interesses dos bancos se expressou na permissividade e liberação para que os bancos privados pudessem imprimir dinheiro à vontade e ampliassem a dívida pública dos governos desde a época do capital mercantil. Desse modo, as instituições financeiras aprofundaram o poder do dinheiro sobre a humanidade como se fosse uma espécie de divindade. Os bancos guardavam o dinheiro de terceiros; com este dinheiro eles puderam ampliar de forma significativa seus negócios. Conhecedores da saúde financeira das empresas e indústrias, os bancos passaram a investir nos negócios mais lucrativos, tornando-se sócios privilegiados mediante a constituição de sociedades anônimas. A inserção dos bancos nas indústrias ampliou o poderio das grandes empresas, que se converteram em trustes e cartéis, fazendo com que o capitalismo concorrencial fosse superado pelo capitalismo dos monopólios. O dinheiro de terceiros nas mãos dos banqueiros aprofundou a concorrência entre os grandes capitais, que buscaram no mercado internacional deslocar suas contradições internas. Na gigantesca disputa entre as potências imperialistas emergiram duas grandes guerras em que a vida de 100 milhões de trabalhadores foi sacrificada no altar do grande deus chamado capital.

A desvalorização da vida humana marca a história do capitalismo. Não se pode esquecer que o capital vem ao mundo escorrendo lama e sangue por todos os seus poros, que no processo de colonização mais de 100 milhões de pessoas que viviam na América foram mortas para servir aos interesses do capital mercantil e dos mercadores europeus, isso numa época em que inexistia bombas atômicas, submarinos nucleares, artilharia aérea, tanques, metralhadoras e rifles de longo alcance etc. A busca do Eldorado perdido nas incólumes florestas da Amazônia para a captura do ouro alcançou seu esplendor nas minas de Potosí na Bolívia e nas minas de Ouro Preto no Brasil. A corrida pelo ouro reatualizou a figura do rei Midas como a representação do espírito ganancioso do capitalista. Ao elucidar a natureza do dinheiro, Marx aponta o fundamento da riqueza da sociedade capitalista. O dinheiro não se converte em mais dinheiro pela mediação simplesmente da troca de mercadorias no mercado ou no espaço do comércio. O dinheiro consegue se converter em mais dinheiro pela mediação da exploração do trabalho, por isso que os capitalistas dizem que a economia não pode parar; por isso que Bolsonaro diz que a economia não pode parar. Como filhote da ditadura militar e da ditadura do capital sobre os seres humanos, ele pretende transformar tudo que toca em ouro.

O dinheiro representa a fase mais elevada do fetichismo da mercadoria. O fetichismo do dinheiro aprisiona mentes e corações e impede as pessoas de constituir uma forma de sociabilidade que não esteja centrada no dinheiro, no lucro e na exploração. O dinheiro tem moldado a existência dos seres humanos, e seu poderio cresce em todo o corpo da sociedade burguesa mediante a educação neoliberal que incentiva a lógica empreendedora, a propriedade privada e o individualismo possessivo.

A crise do sistema do capital não vai ser resolvida lançando mais papel no mercado, pois quanto mais papel lança, mais o dinheiro fica desvalorizado a aumenta a distância entre a riqueza essencial da sociedade e a riqueza fictícia. A natureza abstrata do capital cresce cada vez mais com a predominância do capital fictício. A natureza destrutiva do sistema do capital e o caráter fantasmagórico do dinheiro não conseguem se esconder por muito tempo. Ao invés de constituir-se como um sistema eterno e imutável, o capital revela sua natureza efêmera e contraditória, apontando que não é o dinheiro que cria o homem, mas o homem que cria o dinheiro. Não é o capital que cria o homem, mas o homem que cria o capital. Da mesma forma que criou o dinheiro, a humanidade pode destruir o dinheiro e constituir outra forma de sociabilidade.

Uma sociedade não centrada no dinheiro, no lucro, na exploração do trabalho escravo e no mercado internacional precisa ser instaurada para o bem da humanidade. É preciso acabar com o senhorio do dinheiro. O dinheiro não é senhor dos senhores; ele é uma alquimia, um fetiche, uma miríade, uma ilusão, um fantasma que precisa ser destruído completamente. A classe que pode libertar a humanidade dos contorcionismos do dinheiro e da ditadura do capital é o proletariado. Pela mediação do proletariado, enquanto oponente fundamental do capitalista, será possível constituir uma sociedade forjada no trabalho livre, universal e associado.

Por Artur Bispo

Referências bibliográficas
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
SANTOS NETO, Artur Bispo dos. Presença do capital industrial-financeiro no Brasil. Maceió: Edufal, 2019.

Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/06/a-pandemia-do-dinheiro-na-sociedade-capitalista/

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