O REI MIDAS E A DOENÇA DO CAPITALISMO
Entre as distintas figuras míticas que constituem o patrimônio grego, nenhuma possui maior articulação com o movimento histórico que se ergue com a chegada dos colonizadores portugueses no território brasileiro do que a figura lendária do rei Midas. Cumpre destacar que a encarnação do espírito capitalista se manifesta num tempo histórico em que inexistia qualquer possibilidade de sua materialização efetiva. Nisso se revela a genialidade dos gregos, porquanto foram capazes de antecipar um tempo histórico desconhecido. O burguês enquanto encarnação visceral da ganância que marca o modo de produção capitalista inexistia na sociedade antiga. O indivíduo que transforma tudo o que toca em ouro não era o projeto de existência social que norteava a sociedade antiga. As atividades comerciais achavam-se somente nos interstícios das sociedades que precedem a sociedade capitalista, não se constituindo como a centralidade das estruturas organizativas precedentes. Somente na sociedade capitalista o desejo do rei Midas contamina completamente sua arquitetura produtiva e ideológica.
A determinação de que tudo o que toca deva se transformar em mercadoria, dinheiro, valor, mais-valia, lucro e capital teve sua representação estética anunciada pelo personagem Midas. Antecipando o capitalista, o rei da Frígia tem a sua felicidade depositada no ouro. O capitalista é movido pelo permanente desejo de transformar tudo no nobre metal. O ouro está em todas as coisas, e em todas as coisas está contido o ouro. Assim, o ouro deixa de ser um ente efêmero e contingente para se constituir como uma necessidade premente da espécie humana. O particular se consubstancia em universal e se converte em medida de todas as relações sociais.
A febre do ouro alimenta a corrida dos espanhóis, portugueses, holandeses, franceses e ingleses pela conquista da América. A busca dos mananciais de ouro que corriam das minas de Potosí (Bolívia) e de Ouro Preto (Minas Gerais, Brasil) fez a alegria da nascente burguesia europeia, servindo para lançar abaixo o Ancien Regime. Assim, o ouro se consubstancia na forma privilegiada de manifestação da riqueza (mercantilismo), em que o burguês não deseja o ouro como valor de uso, mas como valor de troca. O ouro como ponto de partida e ponto de chegada da arquitetura econômica e social que plasma a produção de mercadorias no interior do sistema do capital. O ouro como centro de todas as coisas assume a forma fantasmagórica de causa sui.
No entanto, não podemos deixar de destacar a distinção existente entre o rei Midas e o capitalista. O primeiro alcançou o poder de transformar tudo o que toca em ouro pela mediação do deus Dionísio, enquanto o segundo conseguiu transformar tudo o que toca em dinheiro pela mediação da violência aberta do processo de expropriação que marcou a acumulação originária de capitais e pela exploração direta do trabalho escravo nas colônias e do trabalho assalariado na metrópole.
Ao invés de proceder do mundo transcendente, o poder capitalista resultou do movimento imanente do real. O capitalista interveio diretamente no desenvolvimento das forças produtivas e alterou o movimento espontâneo das coisas, como um general que controla seu exército. O capital configura-se como extremamente autoritário e concentrador de poder e fortuna. E completamente diferente de Midas, quando o burguês transformou a natureza (plantas, folhagens, sementes, frutos, flores, rio etc.) e as coisas (roupas, sapatos, comida, etc.) em ouro, não ficou de maneira alguma chocado. E muito menos o burguês ficou arrependido quando transformou o outro ser humano em ouro (mercadoria).
Os capitalistas tornaram milhões de seres humanos na África, América, Ásia e Europa em mercadoria-dinheiro e ficaram cada vez mais felizes com a alquimia realizada. Já Midas ficou abatido e entristecido quando viu que a sua comida e sua bebida viravam ouro e, especialmente, quando sua filha Phoebe, tentando livrar o pai do infortúnio, transformou-se numa estátua de ouro. Ao contrário de Midas, que arrependido suplicou ao deus Dionísio que restaurasse sua condição inicial e o livrasse da maldição, os capitalistas em nenhum instante consideraram a sua capacidade de transformar tudo em ouro uma maldição e nunca se arrependeram de haver acumulado sua fortuna vendendo seus irmãos como escravos, como fizeram com José do Egito. Tampouco tiveram qualquer problema de natureza moral com a maximização do lucro por meio da violência, do genocídio e das guerras.
A sociedade burguesa representou uma completa subversão dos preceitos que pautavam a sociedade antiga e o mundo forjado nos preceitos da eticidade. Ao invés de arrepender-se de sua ambição, do individualismo e do apego à propriedade privada, os capitalistas cada vez mais valorizaram esses preceitos. A sociedade subverteu completamente os valores passados e tentou naturalizar o novo mundo constituído. Centrada no individualismo possessivo, a consciência burguesa transformou o avarento do capital usurário no banqueiro moderno, cuja figura mítica de Robinson Crusoé serviu para afirmar o homem como uma mônada e separado da totalidade social. O homem como uma ilha, e não como um pedaço do continente, promoveu as robinsonadas burguesas.
A maldição de Midas se configurou numa qualidade inerente ao mundo capitalista, em que a moral capitalista tornou-se essencialmente inumana. O amor ao dinheiro (ouro) forjou-se como centro de todas as coisas. O apego incomensurável dos seres humanos ao dinheiro transformou o dinheiro em fundamento de todas as relações sociais e elevou o dinheiro à condição de capital. O amor ao dinheiro deixou de ser uma particularidade do avarento para se irradiar por todos os poros da sociedade. O capital foi paulatinamente conquistando posição no interior da sociedade escravista e feudal, para alcançar status privilegiado na sociedade capitalista. O amor ao dinheiro deixou de ser um mero desvio das qualidades humanas para se constituir como quintessência da humanidade alienada e distante de si mesma. O capital deixou de ser uma atividade episódica e contingente para se plasmar como fundamento de todas as relações sociais.
Nascido numa condição subalterna, o capital superou os entraves estabelecidos e alcançou o status mais elevado. O capital mercantil estabeleceu as bases para que o capital pudesse se revelar como capital industrial e financeiro e plasmar todas as coisas em conformidade com sua imagem e semelhança. Tudo que o capital toca deve virar inevitavelmente ouro; nada deve escapar ao processo de metamorfose do capital. O capital deve mediar todas as relações e transformar as relações dos seres humanos entre si em relação entre coisas (MARX, 1985).
Paradoxalmente, não é possível deixar de anunciar que a capacidade do capital de transformar tudo o que toca em ouro se multiplica cada vez mais na capacidade do capital de transformar em miséria e pauperismo também tudo o que toca. A riqueza do capitalista somente é possível mediante a acumulação de miséria e pobreza. Se o rei Midas culminou ganhando orelhas de burro, imagine o sistema do capital. O quanto de irracional possui o sistema assentado na lógica frenética de acumulação a todo custo e a qualquer preço.
A racionalidade capitalista está assentada numa lógica profundamente irracional, pois destrói incessantemente as forças produtivas e ameaça o destino da humanidade. Ao destruir a natureza e degradar as efetivas potencialidades humanas, o capital se torna inimigo da humanidade e por isso precisa ser superado. A irracionalidade burguesa deve ser completamente superada em nome da preservação dos interesses das gerações vindouras. A irracionalidade do capital precisa ser superada para que a ciência, a tecnologia e as forças produtivas deixem de estar subordinadas ao lucro e ao acúmulo de riqueza. O processo de superação da sociabilidade burguesa e do sistema do capital presume a reorganização do proletariado como classe fundamental da sociedade capitalista e como responsável pelo conteúdo da riqueza material da sociedade. (SANTOS NETO, 2019).
Extrato do livro “Presença do capital industrial-financeiro no Brasil de Artur Bispo” (p. 7-11)
Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/04/o-rei-midas-e-a-doenca-do-capitalismo/
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