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MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS OU AS FONTES CONSTITUTIVAS DO MARXISMO

Professor da UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS (UFAL)

MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS OU AS FONTES CONSTITUTIVAS DO MARXISMO

É fundamental elencar a relevância dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 na enunciação genética das categorias decisivas concernentes à totalidade do pensamento de Karl Marx. Longe de comparecer como mero prognóstico programático dos elementos categoriais que serão desenvolvidos nas obras posteriores, é fundamental destacar que os Manuscritos de 1844 constituem-se tanto como o prólogo quanto como o próprio desenvolvimento de algumas das categorias decisivas do pensamento marxiano. O segundo aspecto estruturador de nosso texto subsiste na manifestação do caráter fundamental da superação marxiana da economia política, do idealismo alemão e do socialismo utópico. 

A exposição do conteúdo colabora com a formulação anunciada por Lênin, em sua obra As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, de que o marxismo opera uma relação dialética entre filosofia idealista, socialismo utópico e economia política. E para que não haja equívoco no entendimento, o marxismo não é uma mera soma dessas fontes, mas a superação (Aufhebung) da essência de cada uma das formas mencionadas. A reviravolta sucedida no âmbito da economia política será possibilitada pela recorrência dos preceitos inexoráveis da dialética materialista, enquanto subversão do caráter mitificado da dialética hegeliana. Além das críticas à economia política e ao pensamento hegeliano, encontramos nos Manuscritos econômico-filosóficos uma crítica expressiva ao socialismo utópico enquanto mera tentativa de ampliação da propriedade privada suprimida na forma da propriedade privada universal e a anunciação do comunismo como a verdadeira realização histórica da essência humana.

Os Manuscritos econômico-filosóficos estão estruturados na forma de quatro cadernos; neles encontramos, de um lado, o diálogo com a tradição alemã através da crítica do idealismo hegeliano expresso na Fenomenologia do espírito; do outro, uma crítica dos clássicos da economia política, desde os defensores diretos do processo de produção realizado pela mediação das máquinas, representado pelo processo de industrialização, até os defensores dos interesses dos proprietários fundiários, manifestos na atividade da agricultura e da renda fundiária; e, por fim, uma crítica do socialismo utópico, revelado nas experiências de trabalho comunitário desenvolvidas por Robert Owen, Fourier e Saint-Simon.

A exposição do conteúdo da obra colabora com a formulação anunciada por Lênin, em sua obra As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, de que o marxismo opera uma relação dialética entre filosofia idealista, socialismo utópico e economia política. E para que não haja equívoco no entendimento, a relação entre as três concepções de mundo se inscreve de forma essencialmente dialética, quer dizer, é uma relação em que se processa uma superação de cada forma singular de sua manifestação. O marxismo não é produto da mera soma dessas fontes; nesse caso, o todo é mais que a soma das partes. Enquanto superação (Aufhebung), ocorre uma ultrapassagem da essência de cada uma das formas mencionadas, ao mesmo tempo que uma conservação de determinados conteúdos fundamentais para o entendimento e superação da realidade dada.

A reviravolta sucedida na economia política burguesa conta com a recorrência da dialética materialista. Marx consegue aplicar os preceitos inexoráveis da dialética materialista aos problemas de economia, quer dizer, ele tenta “descobrir na dialética real do ser econômico as leis da vida humana, do desenvolvimento social dos homens, a fim de dar-lhes uma formulação conceitual” (Lukács, 2007, p. 180). A dialética é modus operandi que permite revelar os limites e as possibilidades da economia política, entender as leis e contradições que perpassam o modo de produção capitalista, bem como indicar a possibilidade fundamental de constituição de um novo desenvolvimento histórico da humanidade. Em síntese, através da subversão da dialética hegeliana, Marx descobre as veredas que permitem ultrapassar tanto a economia política quanto o próprio modo de pensar a realidade de maneira mitificada e idealisticamente.

No primeiro caderno dos Manuscritos, Marx reconstitui o modo como a economia política clássica concebe as categorias do trabalho, ganho de capital, renda fundiária e propriedade privada. Tendo como eixo de sua investigação uma perspectiva diametralmente oposta à economia política, ele consegue inventariar suas categorias sob o horizonte do interesse da nova classe social em ascensão – o proletariado. Marx começa sua exposição destacando determinados aspectos em que transparece uma lúcida veracidade nas interpretações e afirmações da economia política. Essa lucidez da economia política denuncia o caráter interessado de sua investigação do mundo objetivo. No contexto histórico em que pairava como inexorável a necessidade de derrocada do sistema feudal de produção, a burguesia se configurava claramente como uma classe social completamente compromissada com a verdade no processo de elucidação do mundo objetivo.

Como assinalamos acima, nos Manuscritos de 1844 ocorre pela primeira vez uma articulação teórica entre economia política e filosofia idealista, em que ambas as concepções de mundo se entrelaçam. Entretanto, Marx não se limita a reproduzir as teses fundamentais destes dois movimentos teóricos, pelo contrário, busca pela mediação da apreensão de suas leis fundamentais uma ultrapassagem que supera o marco meramente gnosiológico, ou seja, trata-se de uma superação que tem como esteio a ultrapassagem das próprias condições materiais sob as quais repousam essas duas concepções burguesas de mundo. A recorrência à dialética materialista permite demonstrar como as contradições enredam num círculo vicioso a economia política, bem como revela a sua incapacidade de superar as contradições postas no movimento imanente das coisas.

Nos Manuscritos de 1844, Marx desenvolve uma configuração histórica e fenomenológica da alienação do operário no sistema de produção do capital, sendo neste aspecto profundamente inaugural. Ao tratar das categorias da alienação (Entfremdung] e da exteriorização (Entausserung), Marx ultrapassa a filosofia hegeliana porque esta não consegue identificar o trabalho como atividade alienada e o trabalhador como um ser reificado.[1] Hegel somente enxerga positividade no trabalho, e a alienação se circunscreve ao plano da consciência que ainda não alcançou seu verdadeiro conhecimento de si. Escreve Marx: “Hegel fica no ponto de vista dos modernos economistas nacionais […]; ele vê apenas o lado positivo do trabalho, não o negativo” (1993, p. 113). A superação da alienação não passa de superação do estado de espírito que se processa no nível da consciência. Para Hegel, “o espírito é a verdadeira essência do homem, e a verdadeira forma do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo” (apudMarx, 1993, p. 111). Mesmo quando trata da superação das condições objetivas anunciadas no processo de passagem da família para a sociedade civil e da sociedade civil para o Estado, tal superação não transpõe as fronteiras do pensamento especulativo, nunca se refere à superação da alienação em termos objetivos.

Marx demonstra objetivamente como ocorre o processo de valorização do mundo das coisas em detrimento do mundo dos homens no sistema do capital. A dialética consiste em que o trabalho objetivado valoriza as coisas e desvaloriza o trabalhador. O trabalho como mercadoria é uma particularidade do sistema do capital. Nele, ocorre uma cisão entre o operário e o resultado de seu trabalho. É por isso que o objeto de seu trabalho o enfrenta como um estranho e como dotado de um poder independente. A objetivação é negativa porque representa perda para o operário e servidão ao próprio objeto. Escreve Marx: “A economia nacional esconde a alienação na essência do trabalho pelo fato de que não considera a relação imediata entre o operário (o trabalho) e a produção” (1993, p. 64). No entendimento de Marx, a alienação não está apenas na relação do operário “com os produtos de seu trabalho” (1993, p. 64), mas também no próprio processo de produção. O produto do trabalho enfrenta o operário como algo estranho, isso porque o processo de produção é também alienado. Na alienação do produto se revela a alienação da produção. Esta alienação se estende à relação do homem com a natureza e à com o outro homem. Além das críticas à economia política e à filosofia hegeliana, encontramos nos Manuscritos econômico-filosóficos uma crítica ao socialismo utópico, representado por Saint-Simon, Robert Owen e Fourier. No entendimento de Marx, o comunismo utópico não passa de “expressão positiva da propriedade privada suprimida, antes de mais a propriedade privada universal” (Marx, 1993, p. 90), quer dizer, ao invés de superar a propriedade privada, esta espécie de comunismo tenta ampliar a propriedade privada, erigindo-a à condição de propriedade universal, por isso que tende a “aniquilar tudo o que não é capaz de ser possuído por todos como propriedade privada” (Marx, 1993, p. 90).

Por Artur Bispo

Referências bibliográficas

ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In. MARX, K. – ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.

LÊNIN, V. I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In. LÊNIN, V. I. Obras escolhidas. Lisboa: Edições Avante, 1980.

LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O capital. Trad. Carlos Henrique de Escobar. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

MARX, K. – ENGELS, F. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007a.

___________________. Manifesto comunista. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2007b.

RANIERI, J. A câmara escura: alienação e estranhamento em Marx. São Paulo: Boitempo, 2001.

Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/11/as-fontes-constitutivas-do-marxismo/

 

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