CORONAVÍRUS E IMPERIALISMO
A abertura do mercado interno chinês para o capitalismo começou com o colapso da experiência pós-capitalista na época da morte de Mao Tsé-Tung e se intensificou na década de 1990, em que os investimentos japoneses nos países asiáticos desenvolveram as potencialidades capitalistas da China e das demais economias. A conquista definitiva da China para o mundo capitalista foi iniciada em 1976 e livrou o mercado mundial das taxas negativas de crescimento, pois nesse período a economia chinesa sobejamente alcançou os dois dígitos. O ingresso substancial de capital das grandes corporações transnacionais aliado ao processo de privatização das grandes empresas estatais permitiu transformar a China na “fábrica do mundo”. A particularidade da longa história da maquinaria estatal chinesa fortaleceu o poderio da burguesia nacional, em aliança com os grandes representantes do capital internacional, contra os trabalhadores.
A guinada contrarrevolucionária presenciada na China nos últimos 44 anos representou um monumental processo de expropriação de terras dos camponeses e da riqueza produzida pelos trabalhadores. A expropriação dos senhores de terra operada pela Revolução de 1949 foi completamente derrotada pelo sistema capitalista e uma nova espoliação foi colocada em curso, na qual os camponeses foram completamente privados de seus meios de produção e subsistência.
Pela mediação da espoliação dos trabalhadores do campo e pela intensa exploração do trabalho do proletariado, o capitalismo chinês alcançou a segunda posição no ranking da economia mundial. Uma posição erguida sobre os escombros e a exploração da classe trabalhadora, mediante o sacrifício de aproximadamente 775 milhões de trabalhadores(as) chineses(as). A posição hegemônica do capitalismo chinês também inexistiria sem a excepcional extração de mais trabalho e o deslocamento de riqueza das economias dependentes.
A monumental exploração da classe trabalhadora em esfera internacional permitiu que os capitalistas chineses e seu Estado monopolista pudessem constituir empresas como Avic, Norinco, Casic, Banco ICBC, China Construction Bank, Agricultural Bank of China, Bank of China, PetroChina, Sinopec Group, Ping An, Bank of Communications, China Life Insurence, China Merchants Bank, China Minsheng Banking, China Shenhua Energy, Industrial Bank, China Telecom, SAIC Motor, China State Construction. As 500 maiores empresas chinesas atingiram em 2019 uma receita de 6,75 trilhões de dólares ou 45,5 trilhões de yuans, um aumento de 14,8% em relação ao ano anterior (PODER 360, 2019).
As empresas transnacionais chinesas assumiram posição destacada também na produção de ciência e tecnologia. A inserção do capital financeiro no mundo da produção do conhecimento tem permitido que empresas chinesas, como a DJI, sejam responsáveis por 70% dos drones adquiridos mundialmente. O estabelecimento de restrições à penetração das redes sociais coordenadas pela Google, Apple, Facebook e Amazon (GAFA) implica a constituição de uma ampla reserva de mercado para as grandes corporações chinesas como Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi (BATX). O mesmo acontece com os cartões de crédito Visa, Mastercard, American Express, que têm restrições na China, pois seu mercado é monopolizado pelas empresas Alipay, WeChat e UnionPay. Ao invés de utilizar o sistema de localização controlado pelo GPS norte-americano, a China construiu seu próprio sistema de navegação via satélite, coordenado pela Beidou, um sistema atendido por aproximadamente trinta satélites próprios.
O projeto “Made in China 2025” tem como propósito alcançar autossuficiência chinesa no campo tecnológico em 70% dos componentes produzidos até 2025. Isso implica que as empresas que atuam nos EUA devem se submeter a uma nova lógica de produção para não perder espaço para as suas concorrentes chinesas. Os EUA buscam desesperadamente impedir a penetração da poderosa multinacional chinesa Huawei no campo das telecomunicações norte-americanas, com temor de que essa empresa possa controlar e acessar informações confidenciais das empresas e do governo dos Estados Unidos, que consideram ainda a penetração da China Mobile, outra empresa do mercado de telecomunicações, como uma ameaça à segurança nacional norte-americana.
O crescimento econômico chinês nas últimas décadas salvou a economia mundial duma onda recessiva expressiva, apesar das distintas crises experimentadas pelo avanço significativo do capital financeiro. Nota-se que as maiores corporações chinesas são instituições financeiras, o que denota a predominância do capital financeiro sobre o capital industrial.
A queda da Bolsa de Valores no mês de março (2020) contaminou a economia mundial e foi considerada como uma crise promovida pela pandemia do coronavírus (Covid-19). A crise econômica vai se intensificar com o coronavírus porque muitas atividades industriais e comerciais foram afetadas e, possivelmente, as pequenas empresas não terão capacidade para retomar suas atividades.
O surto promovido pelo Covid-19 na cidade de Wuhan começou em meados de janeiro, sendo designado como pandemia pela OMS em 30 de janeiro, quando havia apenas 8.200 casos em 18 países em todo o mundo. A pandemia cresceu de maneira exponencial até atingir mais de 1,6 milhão de pessoas, levando a óbito mais de 100 mil. Apesar disso, o governo Trump, a exemplo do governo Bolsonaro, desconsiderou o coronavírus como ameça e afirmou que tudo estava sob controle nos EUA. Desse modo, os norte-americanos demoraram a suspender as sanções aos produtos médicos chineses para os EUA e continuaram insistindo na tese unilateral de que a pandemia era uma espécie de subproduto da conspiração chinesa contra a economia dos EUA.
O governo chinês agiu de maneira semelhante no início da pandemia. Preocupado com os prejuízos econômicos e interessado tão só em preservar exclusivamente os interesses das grandes corporações capitalistas, adotou medidas abusivas contra os trabalhadores e seus opositores. Antes de construir um hospital em Wuhan em dez dias, não se pode esquecer que a precarização do sistema sanitário chinês resultou do processo de desmonte da rede pública de saúde. Muitos tetos de hospitais desabaram devido ao descaso do governo com a saúde. Ao invés de agir imediatamente no sentido de conter o avanço da crise, o governo preferiu reprimir a comunidade científica e os trabalhadores. Escreve Acier (2020c, p. 3)
As “quarentenas”, sem qualquer acompanhamento médico, enclausuraram dezenas ou centenas de milhares de pessoas em casas e cidades, como Wuhan. Esses setores mais precários da população trabalhadora foram deixados à mercê da morte, enquanto os que denunciavam a administração caótica da pandemia pelo governo chinês foram perseguidos (Li Wenliang, o jovem médico que descobriu a existência de um novo vírus em foi silenciado pela polícia, morreu em função da Covid-19).
A ação mais decisiva do governo na esfera da saúde somente ocorreu depois de inúmeras mortes e protestos dos trabalhadores. O governo chinês negligenciou inicialmente o poder destrutivo do coronavírus e chegou a perseguir os cientistas que apontaram a gravidade da patologia. No começo, a maquinaria estatal chinesa procurou esconder as informações, obstruiu as atividades dos cientistas e médicos e mandou para a prisão todos aqueles que fizeram soar o sinal de alarme da gravidade do problema sanitário.
A primazia da economia sobre a existência das pessoas impediu-o de adotar uma política de isolamento imediato. A preocupação central do governo, expressa no governo Bolsonaro, também aconteceu na China. Evidente que isso se fez de maneira mais sutil, permitindo que o governo da burguesia chinesa pudesse operar no sentido de alterar a correlação de forças e aproveitar a crise sanitária para apresentar uma resposta do ponto de vista capitalista. Desse modo, a China conseguiu conter o avanço da pandemia em seu território. Isso resultou duma avaliação bem pragmática em que ficou claro que o crescimento da pandemia poderia oferecer muito mais riscos ao desenvolvimento da economia chinesa do que uma quarentena planejada.
Essa paralisação necessária deve intensificar a crise econômica e representar o primeiro refluxo depois de trinta anos de prosperidade. O coronavírus aprofundará a recessão mundial e a crise do sistema do capital. O avanço da pandemia paralisou as atividades produtivas e comerciais na região de Wuhan e em diversas outras regiões chinesas, contribuindo para que nos dois primeiros meses de 2020 a atividade industrial chinesa caísse 13,5%, as vendas no varejo decrescessem 20,5% em relação ao ano anterior e os investimentos fixos se reduzissem em 24,5%. O coronavírus intensificou o processo de paralisação do parque industrial chinês, que vinha sofrendo com a recessão da economia mundial. Empresas transnacionais, como a Volkswagen, que possuem fábricas gigantes em Zhejiang, já operavam 30% abaixo de sua capacidade produtiva, com tendência de ampliar seu refluxo produtivo (G1, 2020a).
No contexto do coronavírus, a tendência é que o PIB da China seja negativo em dois dígitos em 2020. Na verdade, a redução da capacidade produtiva não resulta somente dos efeitos nocivos da pandemia do coronavírus. A disputa comercial entre EUA e China indica o refluxo da economia mundial, bem como o Brexit. O crescimento do PIB dos países da Zona do Euro e dos EUA não passou de 2%. A diminuição do ritmo da produção mundial com o coronavírus vai aprofundar a recessão em 2020 e intensificar a crise do capitalismo em escala global. A OMC aponta para a possível redução de um terço do comércio internacional. Segundo a Agência France-Presse (2020, p. 1): “O comércio mundial se contrairá entre 13% e 32% em 2020, muito mais do que durante a crise financeira de 2008, devido ao impacto da pandemia de coronavírus ‒ estimou a Organização Mundial do Comércio (OMC) nesta quarta-feira (8/4). […]. A América Latina e a Europa também sofrerão quedas de mais de 30%”.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) aposta na ação dos Estados-nacionais para superar a nova crise do capitalismo. Ele defende que os governos devem adotar uma política econômica de “tempo de guerra”, na perspectiva de salvar as empresas e o setor financeiro. O FMI defende que os governos ofereçam apoio às empresas privadas mediante uma política de subsídio salarial, bem como fornecimento de suprimentos para a saúde pública e imponha uma política de transferência de renda. É importante livrar as empresas da falência e salvar as redes de comércio e de negócio dos capitalistas.
O FMI “disse que a magnitude e o sucesso das medidas políticas dos governos determinarão a rapidez com que a economia poderá se recuperar quando a propagação do vírus for contida” (BNBC, 2020, p. 1). No entanto, o organismo internacional esqueceu-se de apontar como isso será realizado. Como os governos poderão liberar trilhões para os banqueiros e empresas sem aprofundar o endividamento? Na verdade, a preocupação essencial do FMI é salvar os banqueiros e os interesses dos capitalistas. O referido órgão não apresentou nenhuma alternativa efetiva para o problema sanitário internacional e para a recuperação do sistema de saúde pública que ele ajudou a destruir em todas as partes do mundo.
Para assegurar o ritmo da produção, o Estado coercitivo da burguesia chinesa e mundial está disposto a fazer o que for necessário para garantir a expansão da produtividade industrial. Xi Jinping, secretário-geral do Partido “Comunista” Chinês (PCCh), busca de todas as formas reduzir o efeito negativo da queda de 13% no ritmo da economia chinesa; para isso, não economizará esforços no sentido de atacar os direitos dos trabalhadores e impedir as manifestações operárias contra os inusitados esforços de “guerra”.
Esse cenário deve representar a intensificação da exploração da classe trabalhadora e o aumento do exército industrial de reserva. As grandes corporações chinesas cresceram por meio da exploração da força de trabalho migrante, que representa 288 milhões de trabalhadores, ou seja, “mais de um terço do total economicamente ativo de 775 milhões de trabalhadores” (ACER, 2020b, p. 3). Esses trabalhadores são destituídos dos direitos assegurados aos demais.
No contexto do coronavírus, os trabalhadores migrantes foram impedidos de retornar de suas regiões originárias para o Sudeste da China. Isso implicou a perda dos postos de trabalho e a ampliação do número de desempregados chineses. A taxa de desemprego, que chegou a 6,2%, no primeiro bimestre de 2020, deve crescer cada vez mais com a onda recessiva que contamina a economia mundial e leva as fábricas chinesas a perder encomendas. Apesar do braço repressivo do Estado e da natureza estatal do movimento sindical chinês, as greves dos trabalhadores nas grandes cidades industrializadas passaram a fazer parte de seu cotidiano. As manifestações contra o desemprego e as demissões se multiplicam na China. O mesmo acontece em relação às políticas adotadas pelo PCCh contra o coronavírus.
Houve uma redução do quantitativo de manifestações dos trabalhadores chineses por conta do isolamento provocado pelo coronavírus; no entanto, à proporção que os trabalhadores vão retomando as atividades, os protestos tendem a aumentar. No final de março, o China Labour Bulletin registrou a existência de 14 protestos relacionados ao atraso salarial e à demissão de trabalhadores: 1) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de uma empresa de educação em Dalian, Liaoning (29/3/20); 2) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de uma fábrica de materiais em Liuan, Anhui (28/3/2020); 3) protesto dos trabalhadores contra pagamentos em atraso de um hospital em Yinchuan, Ningxia (28/3/20); 4) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de uma escola de condução em Dazhou, Sichuan (27/3/20); 5) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de um restaurante em Shenyang, Liaoning (27/3/20); 6) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de um varejista em Meizhou, Guangdong (26/3/20); 7) trabalhadores do saneamento protestam contra pagamentos em atraso de salários em Huixian, Henan (26/3/20); 8) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso ocupando os edifícios em Zhengzhou, Henan (26/3/20); 9) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de uma fábrica de automóveis em Suzhou, Jiangsu (26/3/20); 10) tabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de uma empresa de tecnologia em Pequim (24/3/20); trabalhadores protestam contra quitação e salários em atraso de um varejista em Nanyang, Henan (23/3/20); 11) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso e fechamento de uma fábrica de brinquedos e são espancados em Dongguan, Guangdong (21/3/20); 12) trabalhadores do saneamento protestam contra pagamentos em atraso de uma empresa de administração de imóveis em Zhengzhou, Henan (21/3/20); 13) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso de um centro de beleza, ameaçando pular de prédio em Lvliang, Shanxi (20/3/20); 14) trabalhadores protestam contra pagamentos em atraso da BYD Auto em Shenzhen, Guangdong (CLB, 2020, p. 1).
O China Labour Bulletin (2020, p. 1) aponta ainda a existência de protestos relacionados às indústrias de serviços e transportes: “Em 10 de março, mais de mil taxistas na cidade de Liuzhou, no Sudoeste do país, fizeram um protesto exigindo a suspensão das taxas de aluguel de carros e o direito de vender seu veículo de volta à empresa de táxi sem penalidade”. Aconteceram ainda protestos na rede hospitalar, como assinala o referido orgão: “No dia anterior, 9 de março, houve um protesto da equipe médica de um hospital particular em Zibo, Shandong, que também recebeu três meses de salário e alegou ainda que o hospital estava usando suprimentos médicos vencidos” (CLB, 2020, p. 1).
Trabalhadores da construção civil, incluindo parte dos recrutados para construir hospitais de emergência para pacientes do coronavírus em Wuhan, também fizeram protestos nos canteiros de obras em Zhoukou e Henan, e terminaram sendo agredidos violentamente pelo aparato repressivo do Estado. Os trabalhadores chineses acumularam força ao longo das décadas de avanço da ação truculenta dos capitalistas e aprenderam a não abrir mão de seus salários e seus direitos sociais, pois sabem que os capitalistas gostam de aproveitar-se da crise para atacar os seus direitos.
Obedecendo à política internacional que lança a crise nas costas dos trabalhadores, o governo central tem agido com celeridade para salvar os capitalistas da recessão mediante a liberação de multas para as empresas, o abono das obrigações trabalhistas e contratuais e a liberação de mais de 57 bilhões de dólares (400 bilhões de yuanes) somente em 7 de abril de 2020, como forma de estimular o mercado interno. No entanto, alguns especialistas econômicos têm salientado que o governo chinês está mais comedido do que em 2008, pois teme que essa crise seja muito mais profunda. Desse modo, ao invés de liberar trilhões de dólares para salvar as empresas, prefere assumir papel protagonista na retomada do desenvolvimento econômico. Nessa perspectiva, anunciou a retomada de 11 mil obras de infraestrutura realizadas pela China.
Isso implica que o governo de Xi Jinping deve usar os recursos disponíveis para continuar projetos como a faraônica Rota da Seda e assegurar o itinerário para a implementação do projeto de desenvolvimento tecnológico Made in China 2025. Os dois grandes projetos têm como propósito elevar a posição chinesa perante os Estados Unidos no campo da robótica, semicondutores, veículos elétricos, internet das coisas, Geração 5G etc. Enquanto isso, o setor privado chinês permanece mais reticente e prefere aguardar o andamento da economia internacional para realizar qualquer espécie de investimento (ÉPOCA NEGÓCIOS, 2020, p. 1). Isso porque a recuperação da economia chinesa depende efetivamente da recuperação econômica de seus principais parceiros comerciais (União Europeia e Estados Unidos). E num contexto de refluxo dos mercados e de intensificação das ações para preservar os interesses de suas corporações, os Estados-nacionais têm poderes limitados para ajudar na recuperação da economia global, especialmente com seu monumental processo de endividamento.
O vírus do imperialismo perpassa as economias hegemônicas porquanto elas têm no mercado externo o elemento decisivo do ciclo expansivo mediante a absorção de excedentes. Muito mais do que a economia norte-americana, a economia chinesa depende profundamente do mercado externo para poder assegurar suas taxas positivas de crescimento. Os organismos internacionais, as grandes instituições financeiras e os gigantescos aglomerados estão unidos com os Estados-nacionais para agir de maneira coordenada, visando salvar os interesses das grandes corporações. A pandemia serve de álibi para os governos seguirem à risca a cartilha dos organismos internacionais, na perspectiva de colocar em curso um conjunto de medidas contra os trabalhadores. O Estado deve se antecipar e assegurar os interesses dos capitalistas, demostrando que atua como guardião dos interesses das grandes corporações. Para impedir que a economia capitalista entre em colapso, os Estados-nacionais devem tentar salvar o sistema assentado na exploração do trabalho e no aprofundamento do pauperismo da classe trabalhadora.
A redução da produção e da circulação de mercadorias no mercado mundial certamente aprofundará o ciclo depressivo da economia mundial. Segundo Acier (2020b, p. 3):
mesmo que os governos atuem de maneira coordenada para aplicar políticas monetárias (redução da taxa de juros) e fiscais (entrega direta de dinheiro à população). Michael Roberts, em artigo recente, desmente a noção expressa pelo Secretário do Tesouro norte-americano, Steven Mnuchin, de que a recessão que se avizinha será de curta duração, como a queda na Bolsa de Nova York em 1987. Em 2020, a sinfonia toca em outros acordes. As cadeias globais de valor estão afetadas, num momento em que os retornos sobre o capital são baixos e os benefícios globais são estáticos pós-coronavírus, em que o comércio e o investimento globais vêm caindo, e não aumentando.
Nem mesmo os arautos representantes do otimismo financeiro alojados em Wall Street, como os representantes do Morgan Stanley e do Goldman Sachs, fazem projeções positivas para a economia norte-americana. Essas instituições financeiras apontam uma possível queda de 30% do PIB dos Estados Unidos no segundo trimestre de 2020.
Evidentemente que o contexto de crise aprofundará as disputas e rivalidades entre os capitalistas chineses e norte-americanos, bem como a dependência das economias periféricas. As grandes potências tentarão tirar proveito da crise para demarcar sua posição no controle da economia mundial. Os EUA farão de tudo no sentido de preservar suas posições, e os chineses buscarão ocupar as brechas que serão abertas pela enorme recessão mundial.
A aparente eficácia da política chinesa no combate à pandemia do coronavírus na região de Wuhan aponta para a possibilidade da retomada das atividades econômica nas regiões mais afetadas. A celeridade chinesa no isolamento das regiões afetadas e o sucesso alcançado na constituição de novas unidades hospitalares não podem esconder a natureza repressiva do Estado chinês em relação aos trabalhadores.
Os governantes de cidades como Hangzhou, Yiwu e Huzhou, Xangai e Pequim adotaram medidas para beneficiar os capitalistas, viabilizando o retorno ao trabalho com a oferta de transporte gratuito, a fim de “trazer de volta os trabalhadores para regiões ainda com risco de contágio. A província de Hubei, que abriga a cidade de Wuhan, epicentro da pandemia, também anunciou planos para o reinício da produção, sem garantias aos trabalhadores” (ACIER, 2020a, p. 1).
Os governantes de Xangai e Pequim contrataram ônibus para trazer os trabalhadores migrantes de volta às fábricas, depois que dezenas de milhões de trabalhadores deixaram seus postos de trabalho para comemorar o Ano Novo Chinês. O deslocamento do final do ano fez com que empresas multinacionais, como a Foxconn, ficassem destituídas da força de trabalho necessária para produzir iPhones da Apple e outros produtos eletrônicos. Segundo BBC NEWS (2020, p. 1):
Na semana passada, a Apple alertou os investidores de que não cumpriria as metas de produção e receita, já que os suprimentos dos principais produtos foram “temporariamente restringidos” pelas paralisações das fábricas na China. Suas lojas da Apple também foram fechadas por grande parte de fevereiro.
As grandes corporações industriais retomaram suas atividades em 98,6% no final de março. Algumas regiões conseguiram retomar suas atividades e taxas de trabalho em 100%. As 77 empresas de capital aberto da província de Guangdong, por exemplo, alcançaram a taxa de trabalho de 100% (CNBC, 2020b, p. 1). Mas os analistas opinam que esses números não capturam necessariamente o quanto as empresas estão produzindo e contribuindo para o crescimento. A China Renaissance estima que, para as grandes empresas industriais, a taxa de utilização econômica seja de pelo menos 75%, de acordo com um relatório publicado no começo de abril de 2020.
A capacidade de os capitalistas chineses retomarem suas atividades manufatureiras em meio à crise mundial provocada pela pandemia do Covid-19 levou o governo de Donald Trump a ignorar a efetiva expansão do coronavírus nos Estados Unidos. No afã de não perder espaço na concorrência produtiva e financeira com os chineses, Trump recusou o fechamento de determinadas regiões e ignorou a necessidade da quarentena. Isso permitiu o alastramento da pandemia do coronavírus nos EUA, que ultrapassam significativamente a quantidade nominal chinesa. A pandemia deslocou-se a partir de março para a Europa e os Estados Unidos, devendo propagar-se pela América Latina e África nos próximos meses. As projeções realizadas, mesmo com isolamento, apontam para um quadro de contaminação da população mundial.
O avanço das medidas de controle da pandemia na China, mediante o isolamento populacional e o desenvolvimento de novas técnicas de controle, tem servido para assegurar uma posição favorável aos chineses no momento. O sucesso no combate interno à pandemia os credencia na esfera internacional, pois nenhum Estado europeu teve condição de responder aos seus apelos por equipamento médico e insumos hospitalares. Nesse contexto, somente a China “se comprometeu com o envio de 1.000 ventiladores, 2 milhões de máscaras, 100 mil respiradores, 20 mil roupas de proteção, 50 mil kits de teste. A China também enviou equipes médicas e 250 mil ao Irã e à Sérvia” (ACIER, 2020a, p. 4). O chefe de Estado do PCCh, Xi Jimping, considerou a ajuda como uma espécie de constituição da “Nova Rota da Seda” para a saúde.
Os chineses ganharam notabilidade perante os alemães, que bloquearam a entrega de 830 mil máscaras cirúrgicas provindas da China, apesar de as barreiras impostas às mercadorias não se aplicarem às mercadorias em trânsito. Da mesma maneira que o governo italiano, o presidente sérvio, Aleksandar Vučić, afirmou que a colaboração e a solidariedade europeia não passam de um “conto de fadas” (DW, 2020) e que seu país não recebeu nenhum material médico da UE para combater a epidemia; por isso, solicitou a ajuda humanitária chinesa. O auxílio se estendeu a Polônia, Hungria e aos 54 países da África.
Os chineses conseguiram conter o avanço da epidemia, com mais de 3.300 óbitos; 90% dos pacientes infectados conseguiram se recuperar. O maior número de infectados aconteceu na cidade de Wuhan: 50 mil pessoas contraíram o vírus e mais de 2.500 delas morreram, representando 80% dos óbitos chineses. O controle da pandemia se evidencia pelo fato de haver somente duas novas infecções na última quinzena. Isso permitiu a retomada das atividades econômicas, tão desejada pelos capitalistas.
Enquanto isso, os EUA contabilizaram 12.844 mortes na primeira semana de abril, sendo registradas 1.939 mortes em 7 de abril, mais da metade das mortes ocorridas na China. Segundo o G1 (2020b, p. 1): “Os EUA respondem ainda por mais de um quarto dos casos declarados oficialmente de COVID-19 em todo o mundo: 398.185, sendo 29.609 apenas no último dia”. Nesse contexto, até mesmo os EUA tiveram de recorrer ao mercado chinês para minimizar os efeitos maléficos da pandemia sobre os norte-americanos.
Enquanto os EUA permanecem paralisados e sem colocar em movimento nenhuma campanha sistemática em escala internacional para combater a pandemia, o governo de Pequim tem ensejado esforços no sentido de apontar a gravidade do problema epidemiológico e alertar os distintos Estados-nacionais acerca da relevância do estabelecimento de políticas sanitárias de isolamento social.
A posição de cooperação adotada no combate ao Covid-19 pelos chineses aponta para a tendência de hegemonia global chinesa na década de 2020. A China consegue forjar uma imagem internacional muito mais positiva do que as demais potências imperialistas. Os EUA demoraram a adotar uma posição ofensiva no combate ao coronavírus por interesses essencialmente econômicos e agora estão envolvidos numa crise sanitária que deve afetar profundamente seu processo de recuperação econômica, pois mais de 10 milhões de trabalhadores entraram com pedidos de seguro desemprego. A posição equivocada do governo Trump já comprometeu a economia norte-americana, já que a ausência de uma política eficaz no combate ao Covid-19 implica um lastro de mortes expressivo. Os EUA são o segundo colocado no ranking mundial de mortes com Covid-19 e o processo de contaminação está somente começando na América.
A política adotada pelos chineses no combate à pandemia indica uma maior capacidade de atravessar a crise futura anunciada pelos organismos internacionais. Isso coloca como premente a necessidade de os EUA encontrarem a vacina ou uma medicação eficaz para combater o coronavírus em curto espaço de tempo; do contrário, sua capacidade de recuperação econômica ficará aquém da dos chineses, apesar de estes dependerem do mercado norte-americano para assegurar seus elevados índices de crescimento. Num cenário em que todos os governos adotam uma política econômica de guerra, o resultado pode ser a reconfiguração do poder das grandes potências mundiais. O coronavírus pode ser a alternativa que a economia capitalista precisava para deslocar parte de suas contradições. No entanto, novas contradições vão emergir no cenário pós- coronavírus, pois o capital é contradição em essência.
A inexistência de vacinas e a incapacidade da comunidade científica internacional de descobrir um medicamento ou um conjunto de medicamentos eficazes em curto espaço de tempo para combater o coronavírus desvelam as debilidades do capitalismo e do sistema do capital. A natureza mercadológica da medicina no interior do sistema do capital constitui-se como cerne da impossibilidade de uma resposta rápida ao problema. A maioria dos grandes laboratórios dedica-se exclusivamente às pesquisas voltadas diretamente para o lucro e para a reprodução das relações de dependência dos seres humanos aos narcóticos e às drogas.
Enquanto os dois grandes impérios disputam a hegemonia do mercado mundial, Cuba se revela como uma experiência contraposta à lógica do mercado, pois conseguiu organizar uma forma de sociabilidade em que a medicina assumiu papel fundamental. Enquanto as grandes potências econômicas revelam temor perante a pandemia do coronavírus e chegam a abandonar seus “concidadãos” no mar, Cuba estende a mão e acolhe homens e mulheres de um transatlântico de luxo lançados à deriva. Ao contrário do que fizeram os italianos com os refugiados da guerra na Síria – que foram deixados no mar à deriva, em botes salva-vidas e não em luxuosos navios de passeio –, Cuba não somente estende a mão para salvar os contaminados do navio de turistas, mas envia uma excelente equipe médica para ajudar a salvar vidas na Itália dominada pela pandemia do Covid-19.
A solidariedade internacional da classe trabalhadora é revelada pelo povo cubano, diferentemente do povo italiano. Solidariedade revelada no investimento de uma medicina dedicada à cura de doenças que afetam à coletividade e não a medicina mercadológica orientada para atender aos interesses dos vinte maiores laboratórios transnacionais que fazem da medicina uma mercadoria, e aos interesses da burguesia, que prefere investir em cosméticos e objetos de beleza e ignora completamente os problemas fundamentais da classe trabalhadora.
O momento histórico torna visível a natureza predatória do sistema do capital, claramente explicitada no descaso da Alemanha e dos países do Euro com a situação da Itália, uma vez que ignoraram o pedido italiano para acionar o fundo europeu de proteção civil, que possui mais de €500 bilhões (REIS, 2020, p. 1). A colaboração multilateral entre os Estados-nacionais capitalistas obedece completamente ao receituário do capital, ignorando os interesses humanitários. Aprisionados aos interesses do sistema financeiro, os governos são tardios na liberação de recursos para o desenvolvimento de pesquisa a fim de erradicar a pandemia e operar um salto qualitativo na constituição de uma rede hospitalar à altura da crise sanitária mundial. Poucos são os países, como Cuba, que possuem uma estrutura hospitalar capaz de atender à demanda da população num contexto de aprofundamento da pandemia.
Não há como deixar de isentar os capitalistas do mundo inteiro e o sistema do capital, com seus grandes grupos financeiros e aglomerados empresariais, pelos milhares de óbitos que vitimam a humanidade hoje. O capital é o inteiro responsável pela pandemia que afeta a humanidade, porque destrói os ecossistemas pensando exclusivamente no lucro, destrói as redes hospitalares quando transforma a saúde em mercadoria, destrói a força de trabalho quando diminui a capacidade imunológica dos trabalhadores mediante os baixos salários e a intensificação da exploração.
Nesse momento ímpar da história, trabalhadoras e trabalhadores devem em uníssono combater o verdadeiro vírus que destrói a humanidade. O verdadeiro vírus que destrói a humanidade se chama capital (financeiro, industrial/agrário e comercial). É preciso destruir todas as formas de pandemia que ameaçam a existência da humanidade.
Por Artur Bispo
Referências
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ACIER, André. China: queda recorde na indústria e desemprego histórico anunciam problemas à burocracia do Partido Comunista. Endereço eletrônico: http://www.esquerdadiario.com.br/China-queda-recorde-na-industria-e-desemprego-historico-anunciam-problemas-a-burocracia-do-Partido. Acesso em 07 de abril de 2020.
AFP – AGÊNCIA FRANCE-PRESSE. OMC: comércio mundial pode se contrair um terço por coronavírus. Endereço eletrônico: https://www.afp.com/pt/noticia/3958/omc-comercio-mundial-pode-se-contrair-um-terco-por-coronavirus-doc-1qh0jl5. Acesso em 08 de abril de 2020.
BBC NEWS. Coronavírus: chinese workers offered free transport. Endereço eletrônico: https://www.bbc.com/news/business-516394. Acesso em 08 de abril de 2020.
BNBC. MF says coronavirus crisis requires ‘wartime’ policy response. Endereço Eletrõnico: https://www.cnbc.com/2020/04/01/imf-says-coronavirus-crisis-requires-wartime-policy-response.html. Acesso em 08 de abril de 2020a.
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G1.GLOBO. EUA têm quase 2 mil mortos por coronavírus em 24 horas. Endereço eletrônico: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/07/eua-tem-quase-2-mil-mortos-por-coronavirus-em-24-horas.ghtml. Acesso em 08 de abril de 2020.
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REIS, Caio. Imperialismo Europeu em Crise: Esfacelamento, Coronabonds ou Classe Trabalhadora? Endereço eletrônico: http://www.esquerdadiario.com.br/Imperialismo-Europeu-em-Crise-Esfacelamento-Coronabonds-ou-Classe-Trabalhadora. Acesso em 07 de abril de 2020.
SANTIRSO, Jaime. China encara a fatura econômica de vencer o vírus. Endereço eletrônico: https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-23/china-encara-a-fatura-economica-por-vencer-o-virus.html. Acesso em 08 de abril de 2020.
Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/29/coronavirus-e-imperialismo/
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