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A PANDEMIA DA DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA

Professor da UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS (UFAL)

A PANDEMIA DA DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA

Fundamentos históricos do endividamento

O capital financeiro ressurgiu na década de 1970 depois da catástrofe que o mundo das finanças experimentou em 1929. A tentativa de repressão financeira experimentada na fase denominada de “anos gloriosos” do Welfare State foi quebrada pela desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros inaugurada pela ruptura do sistema de Bretton Woods em 1973, mediante o estabelecimento de um regime de câmbio flutuante e eliminação da paridade do dólar com o ouro.

A captura dos países do Terceiro Mundo para o processo de internacionalização do capital financeiro se inscreveu mediante os empréstimos oferecidos pelos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) que reciclaram os recursos do petrodólares. O completo endividamento das economias periféricas abriu caminho para uma nova etapa de mundialização da economia, em que as economias de capitalismo tardio interromperam completamente seu processo de industrialização.

O final da década de 1970 constituiu-se como uma etapa mundial marcada pela “ditadura dos credores” ou “tirania dos mercados”, em que a elevação da taxa de juros precipitou a crise da dívida do Terceiro Mundo, cuja primeira manifestação foi a crise mexicana em 1982. A dívida pública elevou o crescimento quantitativo do capital financeiro ou do capital portador de juros. O crescimento do endividamento público serviu para tornar os governos, espécies de marionetes dos interesses das grandes corporações financeiras. Através do endividamento externo as economias periféricas foram forçadas à liberalização de seus mercados e destruição de seu parque industrial produtivo. A sua implementação serviu de alavanca poderosa para aprofundar a dependência das economias periféricas como a brasileira.

Essa foi a coluna vertebral que sustentou o sistema financeiro nas últimas décadas. No entanto, é importante destacar que a implementação das políticas neoliberais não conseguiu inverter o sentido da taxa de crescimento desigual da economia mundial. Importante lembrar que a taxa de crescimento da economia mundial entre 1960 e 1973 se aproximou de 4%, caindo para 2,4% entre 1973 e 1980, passando para 1,2% entre 1980 e 1993 e estacionando em 2% na década de 1990 (CHESNAIS, 2005, p. 57). O sistema do capital adentrou numa etapa de crise estrutural em que a privatização dos serviços públicos, o endividamento público, a destruição do sistema previdenciário dos trabalhadores e trabalhadoras, o rebaixamento constante do valor da força de trabalho se constituem como suas práticas rastejantes constantes no Brasil.

O endividamento externo brasileiro (SANTOS NETO, 2019)
A história da independência política do Brasil é marcada pela dependência econômica das potências colonizadoras e imperialistas. A dívida pública marca a gênese e o desenvolvimento do Estado brasileiro. A independência comprada de 1822 e a carência de financiamento dos Rothschild marcam a trajetória da economia nacional no século XIX. Os empréstimos foram fundamentais para subsidiar a independência política, as obras estatais, a erradicação da grande seca do Ceará, o financiamento das guerras da Cisplatina, do Paraguai, da Bolívia, do Peru, a construção das ferrovias e as atividades extrativistas de mineração. Os empréstimos ingleses servirão também para o pagamento da renegociação dos empréstimos contraídos.

Os empréstimos internos e externos marcam a trajetória do Estado-Império. A receita estatal obtida pela mediação dos impostos e tributos representava somente 30% das despesas necessárias. A emissão de títulos da dívida pública para negociação no mercado interno tornou-se uma prática recorrente, alcançando um volume duas vezes superior ao serviço da dívida externa. Em 1884, o pagamento dos juros e amortizações dos serviços da dívida interna representava 21% do orçamento da União. A emissão de títulos alcançou patamares extremamente elevados de 1861 a 1880; entre os fatores que justificam sua recorrência encontram-se a Guerra do Paraguai, que representou a emissão de títulos no valor de 340 mil contos de réis, e o casamento das princesas Isabel e Leopoldina, que exigiram a emissão de 280 mil contos de réis (SILVA, s/d, p. 41).

O endividamento interno e externo revelava a incapacidade de a burguesia nacional assegurar a passagem do capital mercantil para o capital industrial e financeiro de maneira autônoma. Por sua vez, o volume de empréstimos externos cresceu acentuadamente na segunda metade do século XIX, representando 11 dos 17 empréstimos contraídos. Os empréstimos serviam mais para liquidar dívidas anteriores do que para assegurar investimentos efetivos no país.

Tabela 1 – Dívida das diversas condições dos empréstimos levantados pelo Brasil em Londres, desde o ano de 1824.

Fonte: Silva, s/d, p. 42.

Os empréstimos serviram mais aos interesses dos banqueiros ingleses do que aos interesses do desenvolvimento da burguesia brasileira. Quando não tinham como vetor a liquidação de débitos contraídos, tinham como propósito financiar atividades bélicas, revelando o caráter expansionista do capital britânico e a natureza perdulária do sistema do capital.

Tabela 2 – Saldos em circulação de empréstimos públicos externos brasileiros lançados antes de 1931, em milhões das respectivas moedas, 1825-1955.

Regime militar-empresarial e endividamento externo (SANTOS NETO, 2019)

O excesso de liquidez propiciado pelos petrodólares permitiria plasmar uma nova forma de dependência e subordinação, sob a qual o denominado “milagre brasileiro” iria claramente demonstrar seus pés de barro em 1979. O endividamento público constituiu-se como o principal vetor do crescimento econômico auferido pelo regime instaurado em 1964. A dívida pública passou de US$ 3,294 bilhões em 1964 para US$ 105,171 bilhões em 1985, crescendo aproximadamente 32 vezes durante os governos militares. Uma parte substancial da dívida externa foi realizada pelas empresas, aglomerados e consórcios nacionais e internacionais. E os governos militares acabaram assumindo a dívida do setor privado e transferindo-a para os contribuintes (classe trabalhadora).

O governo do general-ditador João Baptista Figueiredo pagou, entre 1979-1985, a soma de 28,5 bilhões de dólares como pagamento dos juros e amortizações da dívida externa. O déficit de 64,8 bilhões de dólares nas contas do governo neste período obrigou a contrair novos empréstimos e a ampliar a ciranda financeira (ARRUDA, 2016) vivida nos anos que precederam o Estado Novo. O maior credor da dívida pública brasileira no final da ditadura militar, o banco Chase Manhattan Bank (atual JP Morgan Chase), tinha como principal acionista David Rockefeller, senhor da fortuna pessoal de US$ 2,6 bilhões. A elucidação da fortuna do clã Rockefeller desvela o desenvolvimento socioeconômico e político da América Latina, dos EUA e do Brasil. Os empréstimos estrangeiros obstaram o desenvolvimento do capitalismo periférico.

Tabela 3 – Evolução da dívida pública entre 1978 e 2017 em relação ao PIB

Fonte: FMI apud TERRAÇO ECONÔMICO, 2018.

A dívida pública na atualidade
A elevada taxa de juros concedida no mercado interno brasileiro para atrair capital ocioso de distintas praças resultou na elevação da dívida pública. O volume de pagamento dos juros e serviços da dívida interna e externa entre 1964 e 2014 chegou ao montante de 10 trilhões de reais. O governo Lula mais que duplicou o volume da dívida e teve um crescimento econômico sustentado na absoluta dependência do capital estrangeiro. A dívida interna passou de 640 bilhões para 1,4 trilhão entre 2002 e 2007. Em 2010 a dívida interna e externa representava 1,65 trilhão. Em 2015 o endividamento público alcançou 4 trilhões de reais alcançou 4,24 trilhões em 2019.

O crescimento da dívida pública se intensificou a partir de 2014, quando alcançou seu ponto mais elevado em 2015, como um crescimento de 21%; isso serve para explicar porque a dívida pública passou de 51% do PIB em 2013 para 76% do PIB em 2018. É provável que chegue a 80% do PIB em 2020, ou seja, alcance a cifra de 4,750 trilhões de reais. Isso denota que serão destinados, em 2020, 1,078 trilhão de reais para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública.

Tabela 4 – O orçamento do governo federal executado em 2019 no valor de 2,711 trilhões de reais, 1,038 bilhão foi destinado ao pagamento da dívida pública.

Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida, 2020, p. 1.

A quantidade de recursos aplicada à saúde não chega a 10% do valor destinado ao pagamento dos juros e amortizações de dívida pública federal. A somatória total dos recursos destinados à saúde, educação, assistência social e trabalho não chega a 14% do orçamento geral do governo federal.

Entre 2014 e 2019 foram destinados 6,26 trilhões para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, enquanto que a saúde recebeu somente 592,6 bilhões de reais.

Isso implica que a metade do orçamento federal serve para pagar os juros e amortizações da dívida pública brasileira. É preciso dizer que o pagamento de juros e amortizações se constituem como um poço sem fundo, gerando estagnação econômica. Além do Estado incessantemente fazer novos empréstimos para pagar os juros da dívida – mediante a venda de novos títulos da dívida pública no mercado financeiro – , este usa os recursos dos impostos pagos pelos trabalhadores para pagar os juros e amortizações da dívida pública. O endividamento não é feito para desenvolver a economia brasileira, pois trava seu desenvolvimento e aumenta o déficit das contas públicas. O principal responsável por esse déficit das contas públicas é o endividamento e não os gastos sociais e o salário dos servidores públicos.

O pagamento da dívida externa com os recursos da dívida interna em 2005 se constituiu como uma excrescência, pois ele foi realizado com juros ainda maiores que os praticados pelo FMI, representando uma verdadeira jogatina para atender os interesses dos grandes capitalistas nacionais e internacionais. A dívida interna constituiu-se como mecanismo inescrupuloso do governo da burguesia atrair capital estrangeiro geralmente emanado dos paraísos fiscais, ou seja, não se trata de capital estrangeiro que entra no Brasil para ser investido no setor produtivo.

A política econômica neoliberal para diminuir o endividamento não passa de um fiasco. O ministro da Economia, Paulo Guedes, defende a necessidade de controle dos gastos públicos mediante aprovação da PEC Emergencial e privatização das empresas estatais. Os órgãos da burguesia não se cansam de afirmar a necessidade da continuidade da aplicação da agenda de reformas “estruturais” para subsidiar e descarregar o ajuste fiscal nas costas dos trabalhadores. Trata-se de uma verdadeira farsa, porque o montante da dívida somente se elevou desde 1980. Tempo histórico em que o governo brasileiro se submeteu às políticas de ajuste impostas pela “ditadura do regime financeiro” coordenadas pelos organismos internacionais (FMI, Banco Mundial) do imperialismo norteamericano.

Necessidade de superar o Estado burguês para salvar a saúde pública

É importante considerar que a constituição do Estado brasileiro está organicamente relacionada à dívida pública externa e interna. O endividamento do Estado configurou-se e configura-se como a forma que a burguesia internacional e nacional o controla e subordina. A relação intrínseca do Estado com o endividamento denota claramente que este não pode colocar em movimento nenhum processo que possa levar a suspensão definitiva do pagamento da dívida pública. É possível pelo aprofundamento da crise, o Estado operar a suspensão momentânea do pagamento, mas jamais uma ruptura definitiva com o capital financeiro. Uma ruptura completa com o endividamento somente será possível mediante um processo revolucionário, em que os trabalhadores e trabalhadoras assumam o controle do processo econômico e político. Nos marcos da administração burguesa do sistema do capital não é possível nenhuma forma de ruptura com o sistema financeiro assentado na exploração do trabalho e na espoliação dos trabalhadores.

Imagem 1 – Construção do hospital em Wuhan na China

Fonte: CHINATOPIX/AP (apud VIDIGAL, 2020).

Uma demonstração cabal de que o problema sanitário promovido pelo coronavírus (Covid-19) se revela na ação do governo chinês construir um hospital numa área de 34 mil metros quadrados na cidade de Wuhan em 10 dias, pelo valor de 43 milhões de reais. O referido hospital conta com capacidade para 1.500 leitos e dispõe de uma infraestrutura formada por UTI e mecanismos de respiração mecânica como os respiradores. A logística para atender os pacientes contaminados é formada por 1,4 médicos, enfermeiros, técnicos etc.

Uma pequena simulação com os recursos destinados na ordem de 1.038 trilhão para pagamento dos juros da dívida pública no ano passado permite afirmar que esses recursos poderiam construir 24.139 mil hospitais no Brasil. Parece evidente que iria sobrar hospitais no Brasil como sobram médicos em Cuba.

Parece claro que o verdadeiro responsável pela pandemia do coronavírus é a ganância dos mercadores capitalistas. Não é à toa que o governo Bolsonaro liberou 147 bilhões para salvar os acionistas da crise da bolsa de valores em 15 de março de 2019 e o BNDES liberou mais 68 bilhões para atender as empresas capitalistas, enquanto o sistema público de saúde recebeu somente 5 bilhões de reais para tentar evitar o colapso do Sistema Único de Saúde. Os recursos liberados para atenuar a crise da Bolsa de Valores em março de 2020 daria para construir 4.976 hospitais públicos no Brasil. O problema não é a falta de recursos para resolver o problema sanitário promovido pelo coronavírus, mas a natureza do capital.

A pandemia chamada capitalismo financeiro é a verdadeira causa do problema sanitário da humanidade. Por isso que a humanidade precisa varrer do mapa o capitalismo que transforma a saúde pública em mercadoria. O problema causado pelo capitalismo somente poder ser erradicado mediante o protagonismo dos trabalhadores e a destruição do Estado forjado para alimentar o sistema financeiro.

Por isso não basta bater panela e deixar intacto o sistema do capital. É preciso bater panela para lançar abaixo não somente o governo Bolsonaro, mas para expropriar os capitalistas de todas as formas e maneiras. É chegada a hora de expropriar os expropriadores dos trabalhadores. É hora das trabalhadoras e trabalhadores expropriarem as terras dos capitalistas, os supermercados, as fábricas e companhias aéreas. Para que os trabalhadores não sejam demitidos pelos capitalistas é preciso que os trabalhadores demitam seus patrões e assumam o comando da produção e circulação da riqueza. Somente assim será possível suspender definitivamente o pagamento da dívida pública e acabar com a ditadura do capital financeiro e dos mercados.

Por Artur Bispo

Referências

AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Gráficos: Orçamento federal executado (pago) em 2019 = R$ 2,711 trilhões. Endereço eletrônico: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/orcamento-federal-executado-pago-em-2019-r-2711-trilhoes/. Acesso em 23 de março de 2020.

SANTOS NETO, Artur Bispo dos. A presença do capital industrial-financeiro no Brasil. Maceió: Edufal, 2019.

VIDIGAL, Lucas. Entenda como a China pode construir um hospital em 10 dias. Endereço eletrônico: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/01/31/entenda-como-a-china-pode-construir-um-hospital-em-10-dias.ghtml. Acesso em 23 de março de 2020.

Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/03/28/a-pandemia-da-divida-publica-brasileira/

LANÇAMENTO EM BREVE!!! ​

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