ENSINO A DISTÂNCIA (EAD) E DITADURA DO CAPITAL
A recuperação das economias afetadas pela Segunda Grande Guerra Mundial serviu para intensificar a concorrência entre as grandes corporações empresariais das potências imperialistas na década de 1970, em que os bancos de Wall Street se apropriam dos recursos emanados do petrodólares e estabelecem uma política de empréstimos que aprofunda a dependência das economia periféricas. O endividamento público serviu para reciclar os recursos advindos do petrodólares e permitiu a completa subordinação das economias dependentes aos imperativos das políticas neoliberais, em que a educação e a saúde pública foram destruídas para atender às demandas do capital especulativo.
Nessa perspectiva, o capital emanado do setor produtivo passa considerar a educação como um mercado atraente e pertinente para o processo de reprodução do capital, uma vez que a mais-valia capitalizada não podia retornar a produção e constituir um movimento de ampliação da produção devido o enxugamento do mercado consumidor. Os capitais investidos na educação visam atender à febre capitalista de reprodução ampliada e de lucro.
A educação deve deixar de ser uma necessidade humana para constituir-se como necessidade exclusiva do capital. A educação privada deve permitir o crescimento exponencial da esfera financeira, passando a auferir rendimentos aos seus investidores no mercado de futuros, nas Bolsas de Valores e mercado de ações. A educação transformar-se numa espécie singular de mercadoria ou commodities. Segundo Roma (2013):
os capitalistas que se encontram com excesso de liquidez de capitais passam a buscar valorização em diversos setores e nesse aspecto a educação tornou-se alvo de grandes empresas, constituindo-se um negócio promissor para grupos educacionais que compram centros educacionais por meio de fundos de investimento.
A institucionalização da venda de diplomas através dos cursos aligeirados com a modalidade EaD, representam a possibilidade da formação plural que interessa ao mercado e resulta na “possibilidade” de um indivíduo portador de vários diplomas exercer várias profissões ao mesmo tempo. A aplicabilidade dessas modalidades de ensino, juntamente com o Prouni e o Reuni, significa que a educação superior adotou um processo de mercantilização irreversível. A última coisa que precisa o trabalhador da reestruturação produtiva é qualificação. Esta não passa duma isca para atrair os jovens desempregados ao reino encantado das universidades privadas. Na verdade, o interesse que está em jogo é somente o interesse de reprodução do capital, que encontrou na educação uma estratégia pertinente para se expandir numa etapa histórica de crise de expansão e acumulação.
O governo Lula implementou as contrarreformas no âmbito da educação, segundo o receituário do Banco Mundial e do FMI, de maneira homeopática, quer dizer, fatiando o processo de privatização. O caráter neoliberal desse governo denominado de “esquerda” se manifesta na cronologia dos decretos aprovados. Foram eles: a) novembro de 2003: Projeto de lei que regulamenta a parceria entre o setor público e o setor privado (PPP); b) abril de 2004: Lei 19.861, que cria os Sinaes; c) setembro de 2004: Decreto 5.205, que regulamenta as fundações privadas ditas de apoio público, legitimando sua presença no interior das universidades; d) dezembro de 2004: Lei 10.973 (Lei de Inovação Tecnológica), que permite a abertura das instalações e laboratórios das universidades públicas para o setor privado, regulamenta a pesquisa a partir dos critérios do mercado, em que o pesquisador passa à condição de empreendedor e participante dos lucros aferidos pelos inventos patenteados, estabelece a separação entre pesquisa, ensino e extensão, pois permite que o pesquisador se afaste de suas atividades de sala de aula para servir à iniciativa privada; e) janeiro de 2005: lei que institui o Prouni, espécie de Proer das instituições privadas de ensino superior que têm 50% de suas vagas ociosas; f) dezembro de 2005: Decreto 5.622, que regulamenta o Ensino a Distância (EaD) através de fundações privadas e do Banco do Brasil; g) junho de 2006: PL 7.200/06, projeto que institui a reforma universitária; h) abril de 2007: aprovação do Reuni, plano de reestruturação da universidade pública brasileira que prevê a duplicação do número de vagas e a ampliação da relação professor-aluno de 12 para 18, bem como a elevação da taxa de conclusão das graduações e o combate à evasão escolar.
O referido governo regulamentou o ensino a distância mediante o Decreto 5.622/2005 e abriu caminho para que o capital pudesse expandir seus tentáculos para as esferas consideradas como serviços essenciais do poder público. Evidentemente, o governo Lula não foi o primeiro implementar o ensino a distância. A sua presença no interior da educação brasileira remete ao regime militar-empresarial, este constituiu-se como o senil representante do processo de implementação duma educação voltada para atender aos imperativos tecnicistas e essencialmente mercadológicos. Santos (2006, p. 63) diz:
A criação e implementação de um sistema nacional de educação a distância e a instituição de uma universidade aberta no Brasil vêm sendo desenhadas desde a década de 1970, mas tem na última década do século XX os momentos, não só de maior articulação, mas também de implementação das primeiras experiências de cursos de graduação. É também a partir da década de 1990 que os consórcios universitários aparecem no cenário educacional brasileiro como mais uma possibilidade de implementação da EaD no país. Esses consórcios revelam um movimento de acolhimento da EaD no interior, sobretudo, de algumas Instituições Públicas de educação superior no Brasil ainda que se apresentem constituídos por ações descontínuas e pela carência de financiamento efetivo para a sua consolidação.
No entanto, os elementos essenciais para implementação do ensino a distância seriam estabelecidos na década de 1990, no bojo das formulações que marcaram a constituição da LDB em 1996 e o conjunto de medidas e projetos de lei que foram implementados pelos governos posteriores, como o Decreto nº 9.057 de 25 de maio de 2017, que procura regulamentar o artigo 80 da lei nº 9.394. A sua implementação teve como corolário servir efetivamente aos interesses do capital e atacar os direitos dos trabalhadores.
O Decreto 5.622/2005 serviu não somente para renovar o caminho aberto pela LDB, mas permitiu uma verdadeira onda expansiva da referida modalidade. Não é à toa que o mercado brasileiro é considerado como o mercado mais promissor no desenvolvimento da educação virtual da América Latina. Isso permitiu imenso progresso do ensino a distância ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Segundo o Censo da Educação Superior (BRASIL, 2015, online):
Comparado com 2013, o número de ingressos nos cursos a distância cresceu 41,2% [em 2014], já nos cursos presenciais o aumento foi de 7,0%, o que é uma evidência de que os cursos a distância estão em clara expansão […] Entre 2003 e 2014, o número de ingressos variou positivamente 54,7% nos cursos de graduação presenciais e mais de 50 vezes nos cursos a distância.
Na esfera superior, educação superior EaD passou de 1% em 2004 para 20% em 2018. Segundo o Banco de Dados do Censo de Educação Superior (BRASIL, 2019, p. 07), número de matrículas passou de 7.773.828 em 2017 para 9.374.647 em 2018. Somente em 2018 foram efetuadas 2.358.934 novas matrículas. A região Sudeste comparece com maior taxa de crescimento das instituições de ensino a distância, com 702.319 matrículas, representando 39,98% em 2018 (2019, p. 13); seguida pela região Sul com 389.926 matrículas, representando 22.20% das matrículas efetuadas. No entanto, quem fica em segundo lugar no total de matrículas realizadas no ensino superior é a região Nordeste, com 1.746.656 matriculas presenciais, semipresenciais e EaD. Não é à toa que os ideólogos do ensino a distância falam em réquiem do ensino presencial. A tabela abaixo aponta o crescimento exponencial decantado pelos referidos ideólogos do capital.
Tabela 1 – Matrículas em cursos de EAD no Brasil, por região, de acordo com o Censo da Educação Superior 2017
REGIÃO | Total | % do total | EAD | % do total | No. das Instituições |
Norte | 673.777 | 8,13% | 200.061 | 11,39% | 6% |
Nordeste | 1.746.656 | 21,08% | 299.408 | 17,04% | 19% |
Sudeste | 3.705.394 | 44,72% | 702.319 | 39,98% | 41% |
Sul | 1.388.211 | 16,75% | 389.926 | 22,20% | 23% |
Centro-Oeste | 772.300 | 9,32% | 164.943 | 9,39% | 11% |
Total | 8.286.338 | 100% | 1.756.657 | 100% | 100% |
Fonte: ABED, 2019, p. 15.
O Grupo Kroton (2016) destaca que possui mais alunos de graduação e pós-graduação a distância que presenciais. São 574 mil na EaD e 450 mil no ensino presencial. “Sua rede de EaD atinge mais de 600 municípios pelo país, em quase mil polos presenciais. Sua capilaridade é maior que a UAB, maior programa de educação superior público a distância […]. Sua mensalidade média é menos da metade do presencial” (PIMENTA, 2017, p. 317). No decorrer de 2019, o Grupo Kroton ampliou sua presença no ensino fundamental e ensino básico mediante a compra do maior grupo relacionado à educação básica, formado pelo complexo: Anglo, Saraiva, Scipione. Ática, Red Ballon, Sigma, Sistema de Ensino PH, SER, Maxi, Ético, Escola Chave do Saber, Plurall, Plataforma Educacional PAR, Colégio Motivo, Sistema de Ensino Geo, Colégio Integrado etc.
Os ideólogos do réquiem encomendado pelo capital não se cansam de assinalar o espaço brasileiro como extremamente propício para o desenvolvimento do ensino a distância, pois o Brasil representa o segundo maior número de usuários do Google e Facebook do mundo, passando em média 555 minutos mensais no Facebook contra a média internacional de 361 minutos (ABINEE, 2013, p. 09). Em 2012, existiam no Brasil mais de 262 milhões de linhas telefônicas ativas, como 133 acessos por 100 habitantes, quer dizer, existiam mais linhas telefônicas e celulares do que o quantitativo de habitantes no país. O Brasil somente perde para os EUA em número de usuários desses equipamentos. O crescimento do número de usuários das redes sociais e a capacidade de utilização dos smartphones, computadores e tablets se estendem às operações bancárias (transações por meio de cartões de débitos, créditos, terminais de autoatendimento e operações diretamente realizadas nos celulares e computadores) e demais serviços implicando numa economia de custo para o sistema financeiro.
Enquanto a China configura-se como a economia que mais cresce na aplicação dos mecanismos da informática aos meios de produção, estabelecendo severas restrições às redes sociais, no Brasil elas crescem sem que haja um efetivo crescimento das pesquisas no campo da tecnologia da informatização e sem um claro domínio dos mecanismos de programação e das estruturas complexas que perpassam a tecnologia da informática e da cibernética. O baixo investimento em ciência e tecnologia, o baixo domínio da parafernália tecnológica, coloca o Brasil como um país profundamente vulnerável em segurança na internet e perante uma guerra cibernética; em que seus
usuários não passam de meros consumidores de produtos que desconhecem seus fundamentos, suas linguagens de computação, sua inteligência artificial etc.
Ensino a distância é a combinação perfeita entre duas coisas que servem para atacar os trabalhadores: 1) natureza contrarrevolucionária da tecnologia da informação; 2) natureza reducionista da educação como ensino.
O primeiro elemento, a natureza da tecnologia expressa no desenvolvimento da computação, da informática e da internet. Essas tecnologias, que emergiram do desenvolvimento do complexo industrial-militar, não têm como propósito aliviar o fardo do trabalho humano, mas aprofundar a exploração do trabalho mediante a economia de tempo de processo de produção, ou seja, a denominada terceira “revolução industrial” serviu tão somente aos interesses do capital contra o trabalho. Através do desenvolvimento tecnológico foi possível operar o processo de flexibilização das relações de trabalho, da terceirização e da precarização. A superação do modelo fordista-taylorista pelo toyotismo tem como fundamentação a contrarrevolução operada no mundo do trabalho em que a parafernália da computação serviu para atacar os direitos históricos da classe trabalhadora e destruir as organizações operárias mais combativas.
As novas tecnologias aplicadas ao processo produtivo tiveram como propósito atrofiar o desenvolvimento das forças produtivas, à proporção em que serviram para liberalização do mercado, desregulamentação das relações e dos contratos de trabalho, das privatizações de empresas estatais encetadas sob auspícios das reacionárias políticas neoliberais. As tecnologias da informatização remodelaram a produção e asseguraram elevados índices de produtividade aos grandes aglomerados transnacionais, lançando abaixo as velhas estruturas produtivas assentadas no trabalho artesanal, no modelo fordista e nas velhas formas organizativas empresariais.
As transformações nas relações de produção passaram significativamente a reverberar nas relações sociais, em que o mundo decantado das mercadorias provindas da microeletrônica e microinformática passou a dominar tanto o mundo da produção quanto o mundo das relações sociais e interpessoais. Isso pode claramente ser observado na relação de dependência e subordinação dos indivíduos ao mundo integrado pela internet. As redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook, Whatsapp, chats, blogs etc.) constituíram um universo virtual plenamente à altura da natureza abstrata e fictícia do capital financeiro. Elas acabaram servindo para aprofundar o processo de alienação humana e ampliando as relações forjadas no isolamento, no individualismo e na concorrência. A natureza fictícia do capital financeiro se expressa nas formas de sociabilidade que valorizam o mundo virtual e abstrato em detrimento do mundo real.
O crescimento dos lucros e da rentabilidade provém de múltiplas e complexas operações, em que a distinção existente entre a forma fundamentação de composição da riqueza expressa em lucro, enquanto produto da mais-valia apropriada, passa a não mais se distinguir da renda; enquanto formas que podem proceder ou não da produção da mais-valia, pois os rendimentos auferidos podem emanar
duma infinidade de relações financeiras como “renda da terra”, renda sobre conhecimento produzido, renda do capital aplicado em ações nas Bolsas de Valores, renda resultante dos paraísos fiscais, do narcotráfico, do tráfico de seres humanos, do comércio ilegal de armas, do roubo praticado pelas organizações criminosas etc.
O segundo aspecto está estritamente relacionado à educação. O ensino a distância é a forma mais poderosa encontrada pelos representantes do capital para quebrar com a espinha dorsal da educação pública, gratuita e socialmente referenciada. Trata-se da banalização da educação, reduzindo-a claramente aos imperativos do mercado. A educação é simplesmente reduzida ao ensino, desconsiderando-se a complexidade que envolve o espaço pedagógico da aprendizagem e da produção do saber. A educação é complexo que não pode ser reduzido ao ensino e muito menos ao ensino a distância. Este serve para reforçar a natureza destrutiva do capital e o processo de intensificação da dependência econômica do Brasil mediante o aprofundamento da dependência científica e tecnológica.
O ensino a distância comparece como coroamento do processo de mundialização do mercado interno brasileiro mediante a completa abertura para o capital estrangeiro. O fim da reserva de mercado pelo governo Fernando Collor de Mello em 1990, implicou na abertura para o capital internacional e representou completo desmonte dos incipientes e tímidos projetos de desenvolvimento tecnológico e científico sob bases forâneas. Desse modo, lançou-se abaixo o projeto de pesquisa constituído pelo Cobra, pela Digibras (1974) e pelo Centro Tecnológico de Informática (1982) de projetar, desenvolver e produzir hardware e software com tecnologia nacional, com predominância das empresas brasileiras e colaborar para o desenvolvimento industrial e para a constituição de uma balança comercial favorável.
A natureza dependente do capitalismo brasileiro no campo da produção de ciência e tecnologia pode ser observada no baixo investimento privado e estatal em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). O Brasil configura-se entre os 12 países com maior PIB mundial; destacando-se como aquele que dedica menor taxa de recursos para P&D. Em 2102, os EUA investiram 419,5 bilhões, a China 132 bilhões de dólares, o Japão 208 bilhões de dólares, a Alemanha 97 bilhões de dólares, enquanto o Brasil dedicou somente 28,2 bilhões de dólares, ou seja, investiu somente 1,25% em P&D (ABINEE, 2013).
A abertura para o capital estrangeiro e a ampliação das concessões fiscais permitiram que mais de 400 empresas multinacionais (IBM Brasil, Sanmina-SCI, Multtek Brasil, Flextronics Brasil, Appel, Ericsson, HanaMicron. Huawei, Smart Modular Tecnologies do Brasil, Nokia, Samsung, NEC, Fairchild, National Semiconductors, Philips e Texas Instruments, Dell, Magneti Marelli, Motorola Mobility, Motorola Solutions, Semp Toshiba etc.), de equipamentos de telecomunicações, de informática e automação se estabelecessem no Brasil. E em parceria com essas multinacionais, empresas brasileiras acumularam fortuna produzindo equipamentos com “tecnologia nacional”, “como demonstram empresas como a Bematech, Padtec, Altus, Perto, Intelbras, Linear, entre várias outras. Geraram-se patentes e foram criados centros de design de semicondutores” (ABINEE, 2013, p. 32).
Os ideólogos do ensino a distância defendem o uso de ferramentas e equipamentos que são todos estrangeiros, em que nada é produzido com tecnologia e ciência brasileira, mas com ciência e conhecimento produzido no exterior. A Fundação Lemann, pertencente ao homem mais rico do Brasil (Jorge Paulo Lemann), promove diversos cursos para estudantes e professores, assim como, vende diversas plataformas digitais para as instituições públicas brasileiras. A maioria de seus produtos emanam das parcerias desenvolvidas com universidades estadunidenses, como Harvard University, Yale University, Stanford University, Columbia University, University of Illinois, University of California etc.
A TOTVS conseguiu constituir-se como maior empresa brasileira no campo da informática pela sua parceria estabelecida com as universidades Stanford e San Jose State (SJSU). Através dessa parceria procura assegurar sua atuação no campo da inteligência artificial, UX design, processamento em linguagem natural, Big Data, visão computacional etc. A campeã nacional na venda de software de gestão empresarial tem laboratório de pesquisa em ciência e tecnologia ainda em Raleigh na Carolina do Norte, em que busca se apropriar do conhecimento produzido em suas três universidades: Duke University, a University of North Carolina at Chapel Hill e a North Carolina State University. O ensino a distância não permeia a relação dessa transnacional brasileira; pelo contrário, ela faz do ensino a distância um negócio extremamente lucrativo. No entanto, todas essas empresas transnacionais fazem coro ao processo de desmonte da pesquisa desenvolvida na universidade pública e defendem que os recursos públicos devem ser destinados ao setor privado.
Ensino a distância e trabalho remoto
A simbiose estabelecida à natureza contrarrevolucionária da tecnologia da informação e a natureza reducionista da educação como ensino resulta na destruição da tríade (ensino, pesquisa e extensão) que perpassa a universidade pública brasileira. O ensino a distância implica no fim sistemático da universidade pública. Ela ameaça não somente o ensino presencial, mas a pesquisa realizada nas instituições públicas brasileiras enquanto únicas instituições que fazem pesquisa no país.
A noção de universidade fundamentada na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, estabelecida pela Constituição de 1988, serviu para elevar a intervenção das instituições públicas de ensino superior no universo da pesquisa realizada no Brasil. À exigência dessa unidade teve o mérito colaborar na elevação dos níveis de formação dos docentes das universidades públicas federais, estaduais e municipais. As pesquisas realizadas pelas universidades públicas representam 90%, enquanto as pesquisas e publicações realizadas pelas instituições privadas representam somente 10%. As pesquisas no campo da saúde não são realizadas pelos hospitais e laboratórios privados, mas pelas universidades públicas e institutos de pesquisa estatais ou com financiamento estatal. Dentre as 20 instituições brasileiras que mais publicaram na plataforma ScienceDirect estão 14 universidades federais, 04 universidades estaduais e 02 institutos públicos federais. Nenhuma instituição liderada pelas corporações que atuam no ensino superior como o grupo Kroton-Anhanguera. As pesquisas das instituições públicas colocam o Brasil no 13º em quantidade de publicações na referida plataforma (MANTOVANI, 2019).
Isso indica que existe pesquisa sendo realizada no Brasil, inclusive pesquisas que são realizadas nas universidades que não visam atender à lógica do mercado e ao processo de transformação do conhecimento em mercadoria. Apesar das exigências dos órgãos de fomento no sentido de subordinar as pesquisas universitárias ao universo regulado pelas patentes e o estabelecimento de parcerias com as empresas capitalistas e sua lógica empresarial assentada no lucro, ainda se pode produzir conhecimento científico na perspectiva de armar trabalhadoras e trabalhadores para a superação do sistema do capital. A pesquisa que interessa à classe trabalhadora e a sociedade como um todo será duramente atacada para atender aos interesses do capital.
Apesar dos cortes de 30% (equivalente a R$ 5,8 bilhões) promovido na educação superior em 2019, sob a forma de “contingenciamento” ou bloqueio, 46 universidades brasileiras participaram da listagem das 1.000 melhores universidades do mundo eleitas pelo Times Hidger Education.
No entanto, no mercado global as universidades comparecem como figuras coadjuvantes dos grandes centros de pesquisas controlados pelos aglomerados transnacionais e multinacionais. Segundo Chesnais (1996, p. 142), “a vinculação entre conhecimento científico fundamental e tecnologia tornou-se sensivelmente mais estreita”. A mundialização do capital, como expressão da centralização e como resultado na natureza “oligopolista da concorrência”, faz com que os complexos industriais-financeiros assumam grande investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia (CHESNAIS, 1996, p. 117). As pesquisas realizadas (ciência e tecnologia) resultam de “acordos de cooperação técnica”, ou operações de integração vertical na origem, um componente da estratégia tecnológica dos grupos, complemento de sua própria P&D” (CHESNAIS, 1996, p. 117). Por sua vez, a ciência e a tecnologia comparecem como elementos essenciais nas estratégias e métodos das articulações, rivalidades, competições, fusões, incorporações e cooperações entre os grandes oligopólios. Assim, as pesquisas que procuram escapar ao receituário do mercado devem ser completamente destruídas. Os recursos destinados à pesquisa devem ser desviados para o sistema financeiro e para as instituições privadas diretamente ou indiretamente mediante subsídios, anistia fiscal e desoneração trabalhista.
O ensino a distância servirá para aprofundar a dependência brasileira no campo da produção científica e do conhecimento. Essa modalidade de ensino implica na condenação dos estudantes e professores brasileiros à condição de meros usurários dos produtos emanados da parafernália da tecnologia e da ciência da computação produzida pelos países centrais. Uma produção que será cada vez mais controlada e subordinada. No entanto, os seus ideólogos não se cansam de elogiar a sua própria ignorância e alienação, quando reduzem o ensino ao mero consumo das inovações tecnológicas e das estratégias educacionais.
O crescimento exponencial da dependência brasileira no campo da educação e da produção do conhecimento encontra na medida anunciada pelo MEC (Ministério da Educação) um ponto importante para petrificação na estrutura das universidades brasileiras. A tentativa de lançar um pá de cal na universidade pública emerge da tentativa do governo federal de universalizar o ensino a distância mediante portaria publicada em 18 de março, autorizou por um período de 30 dias – podendo ser prorrogados –, “a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017″. A referida portaria se aplica em caráter excepcional, devido à pandemia de coronavírus, às instituições de ensino superior: Institutos Federais, Colégio Pedro II, Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), Instituto Benjamin Constant (IBC) e universidades e faculdades privadas.
Entre os recursos adotados, os ideólogos do ensino elegem a teleaula como seu elemento fundamental. Na verdade a teleaula não passa de uma variante do teletrabalho (Home office). A beleza do título não pode esconder a natureza draconiana presente na nova modalidade de exploração da classe trabalhadora. A teleaula, como o teletrabalho e home office, não passa do trabalho realizado em domicílio. Isso implica numa ampliação da expropriação do tempo de trabalho docente, à proporção em que se intensifica o trabalho que o docente realizava em sua moradia como: preparar aulas, corrigir provas, ler os trabalhadores das bancas examinadoras, emitir parecer para as revistas especializadas, escrever artigos para revistas nacionais e internacionais, publicar permanentemente em periódicos qualificados, realizar orientação de alunos etc.
Os apologetas da teleaula trabalham o tempo todo com um discente ideal, ou seja, um discente super organizado, motivado para o aprendizado, responsável para realização das tarefas e obrigações de maneira autônoma. consciente dos objetivos das atividades realizadas, disciplinado na divisão de seu tempo, dotado de habilidades interativas com mundo cibernético e com excelente fundamentação teórica. É nesse universo ideal que a teleaula se ergue como mecanismo meramente instrutivo, forjado no acúmulo de informações, no reducionismo do conhecimento ao universo meramente quantitativo. A recorrência ao textos digitais (artigos, apostilas, capítulos de livros etc.), simulações on-line, jogos eletrônicos, podcasts, músicas etc (ABED, 2019, p. 9-10) não passam de reducionismo, pois todas essas ferramentas vêm sendo adotadas no ensino presencial.
O teletrabalho/trabalho remoto e a teleaula implicam na destruição do ambiente social de trabalho e aprofundamento do isolamento imposto pela sociedade forjada na concorrência e na desigualdade social. O teletrabalho das empresas de marketing adentra no interior da universidade pública e devem servir para destruir completamente o espaço universitário. A teleaula e o teletrabalho provocam o enfraquecimento da organização de trabalhadoras e trabalhadores e a obliteração das relações de trabalho. Tanto nas instituições públicas quanto nas instituições privadas, a teleaula representa o teletrabalho precarizado, flexível, polivalente e multifuncional instituído pelo toyotismo.
Nota-se assim que as máquinas inteligentes e os assistentes virtuais, com sua constelação de inteligência artificial, servem aos imperativos da reprodução do capital. O acesso ubíquo do capital à ciência e a tecnologia permite a intensificação da exploração do trabalho docente mediante a incorporação de novas tecnologias no controle da reprodução do conhecimento oferecido pelas instituições de ensino superior. A defesa de que a teleaula se constitui como uma forma de reduzir a distância que separa o aluno da escola não passa de manipulação ideológica, pois o capitalismo eliminou todas as distâncias e fronteiras com desenvolvimento da revolução dos meios de transportes. O problema fundamental não é a distância espacial, mas a necessidade que o capital tem de destruir a educação presencial e a educação pública.
O ensino a distância representa a face mais perversa do distanciamento e estranhamento que perpassa o sistema do capital, enquanto um sistema assentado no trabalho abstrato. O ensino a distância representa o aprofundamento da distanciamento que marca a sociedade capitalista do trabalhador em relação aos meios de produção e aos meios de subsistência. O distanciamento que marca o trabalhador do objeto de seu trabalho, de si mesmo e do gênero humano é o elemento decisivo da produção capitalista. Separado de si mesmo, da coletividade de seus parceiros de trabalho e dos alunos, o professor se transforma numa figura completamente cindida e fragmentada. O educador perde a sua verdadeira dimensão social e passa constituir-se como mero apêndice da máquina. As mudanças operadas no chão da fábrica em que o operário é reduzido à condição de mera extensão da máquina perpassa a mudança proposta para a educação através da EaD. O tutor deve configura-se
como figura coadjuvante do processo de ensino-aprendizagem mediante o esclarecimento das dúvidas, sustentação teórica de conteúdos e participação nos processos avaliativos. Por fim, o tutor será substituído por um tutorial e o educando se transformará numa figura completamente orientada pelos mecanismos artificiais da parafernália da informática que servem ao capital fictício.
Na procura incessante de assegurar o controle absoluto do trabalho, o capital procura novas modalidades de aprofundar a subsunção real do trabalho aos seus imperativos e comandos. O ensino a distância representa a subsunção completa da atividade docente aos imperativos do capital, pois o educador não passará de um tutor, em que a divisão social do trabalho vai aprofundar-se, à proporção em que o tutor não decidirá com seus educandos os mecanismos de aprendizagem e produção do saber, mas será um mero consumidor dos tutoriais e programas elaborados pelas grandes corporações que controlam as instituições de ensino.
A questão decisiva é de natureza econômica. A novidade do ensino a distância é a economia. A questão decisiva é a economia na redução do salário e no controle das atividades docentes. A questão decisiva é a necessidade da ampliar a taxa de acumulação de mais valia e os processos de expropriação da riqueza dos trabalhadores. Para isso é fundamental destruir a carreira docente universitária e a universidade pública. A figura do tutor deve substituir paulatinamente o educador e o professor e; desse modo, desregulamentar a atividade docente mediante teletrabalho e o trabalho mediado por inovações tecnológicas, resultando na sobrecarga da jornada de trabalho, na impossibilidade de desvincular a vida pessoal e trabalho, problemas com a visibilidade constitui-se como parte da amálgama que tem como propósito intensificar a exploração do trabalho e rebaixar o valor de seus salários.
A portaria emitida pelo governo federal em 18 de março de 2020 foi seguida por uma outra portaria que trata de trabalho remoto por conta da pandemia. Pela mediação da nova portaria o governo ataca os direitos dos servidores públicos federais mediante a cláusula do trabalho remoto, suspendendo o pagamento de benefícios como horas extras, adicional de insalubridade e adicional por trabalho noturno, além do auxílio-transporte, já que esses trabalhadores estão trabalhando de casa. O governo primeiro obriga os professores das instituições públicas de ensino ao trabalho remoto mediante a constituição do ensino a distância, em seguida corta seus salários de forma significativa, porque o salário base dos servidores não chega a metade das gratificações por titulação etc. Além dos docentes das instituições federais, os servidores públicos com mais de 60 anos, os servidores que apresentam sintomas gripais, os servidores com doenças preexistentes crônicas ou graves e as servidoras grávidas e lactantes foram obrigados a adotar o trabalho remoto, para em seguida o governo da burguesia cortar seus salários. Desse modo, os salários dos servidores são cortados para atender aos interesses do sistema financeiro, em que o governo da burguesia liberou mais de 1,5
trilhão de reais para salvar os especuladores da Bolsa de Valores e as corporações transnacionais brasileiras.
A economia com redução dos salários e a transformação dos professores em tutores, no formato trabalho remoto, será seguida pela redução expressiva dos custos com a logística e a infraestrutura necessária para o desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão na universidade pública. O ensino a distância implica no fim das despesas prédios, equipamentos, mobiliários, imóveis, veículos, com laboratórios, centros de pesquisa, experimentos, salas de aula, salas de pesquisas, bibliotecas, auditório etc. E grande parte dos bens móveis e imóveis podem ser vendidos ou alocados, como já foi projetado pelo governo para resolver os problemas de receita da educação superior, como pode alocar os laboratórios das universidades para as instituições privadas.
As despesas com a constituição do espaço efetivo para a produção e socialização do conhecimento deve ganhar no mundo virtual sua forma privilegiada de ser. O ambiente da produção do conhecimento e do saber é invertido e tudo fica de cabeça para baixo para atender a natureza especulativa do capital financeiro e sua capacidade de reprodução potencializada pelo mundo digital. Desse modo, as relações de sociabilidade efetiva dos estudantes entre si e dos estudantes com o corpo docente da universidade devem ser subvertidas para encontrar na representação do mundo abstrato e virtual sua quintessência, mostrando como o capital tende a transformar tudo em mercadoria. O abstrato que emana do trabalho abstrato encontra seu coroamento do mundo virtual em que tudo aparece fora de lugar para esconder que o fundamento do capital como acumulação de mais-valia e exploração do trabalho.
A maximização do mundo virtual imposto pelo ensino a distância implica na redução substancial dos custos e das despesas com a educação superior. Isso implica na completa desresponsabilização do Estado para com a educação superior, com a educação básica e fundamental. Os preceitos assentados no individualismo burguês devem ser supervalorizados, à proporção em que o indivíduo, e pouco importa a sua idade, deve assumir a inteira responsável pela sua formação ou deformação. O ensino a distância representa a exacerbação do isolamento e da comunidade de homens e mulheres cindidos.
O ensino a distância é o elogio à loucura do sistema assentado na desumanização das relações sociais. O elogio ao mundo das máquinas inteligentes implica na destruição da humanidade, pois os seres humanos deixam de interagir com os outros para interagir com as máquinas, obstruindo as relações de sociabilidade que fortaleçam o espírito coletivo. Assim, as máquinas inteligentes devem transformar a relação das pessoas entre si na relação das pessoas com as máquinas. A distância do educando em relação ao educador, do professor ao aluno, do mestre ao aprendiz forjaram as pessoas mais máquinas e menos seres humanos. Desse modo, os tutores passaram a ser tutoriais inteligentes e os novos educadores serão as máquinas ou robôs que aplaudem a banalização das relações humanas.
Essa é a alquimia que o capital financeiro pretende realizar pela mediação do ensino a distância. O problema é que contra a contabilidade capitalista existe a classe trabalhadora, existe a organização do movimento dos docentes e dos estudantes. A classe trabalhadora organizada poderá não somente lançar abaixo o poder político, que expressa os interesses de agronegócio, de Wall Street e da Bovespa, mas dinamitar completamente a maquinaria estatal e o poder destrutivo do capital.
Os ataques dirigidos à universidade pública, à educação básica e fundamental indicam claramente que o capital não tem nada a oferecer para a humanidade. Numa época em que se deveria estar construindo hospitais efetivos para minimizar os efeitos da pandemia sobre a saúde dos trabalhadores, a única coisa que preocupa os representantes do capital é com a economia e com os negócios dos banqueiros. Nesse contexto, se retira recursos da educação, mediante corte de bolsas de pesquisa para o coronavírus e outras pandemias, para atender os interesses dos banqueiros. Por isso que os trabalhadores unidos devem superar todas as suas fragilidades e fragmentações e constituir uma ofensiva de massa socialista para assegurar a efetiva universalização do trabalho, da educação e da saúde. O capital é barbárie e usa o coronavírus para atacar os direitos de trabalhadoras e trabalhadores na educação. Por isso morte a verdadeira pandemia da humanidade, essa pandemia se chama capital.
Por Artur Bispo
Referências
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Fonte: https://ofensivasocialista.wordpress.com/2020/04/18/ensino-a-distancia-ead-e-ditadura-do-capital/
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